sexta-feira, 14 de julho de 2023

Novidades em Streaming - Paloma

De: Marcelo Gomes. Com Kika Sena, Ridson Reis e Wescla Vasconcelos. Drama, Brasil, 2022, 104 minutos.

"Eu num sei nem por onde começar... [...] Seu Papa. Meu nome é Paloma. Vivo e trabalho aqui em Saloá como agricultora e, às vezes, faço bico de cabeleireira. Vivo amigada com o meu marido Zé. Com ele crio a minha filha Jennifer, o presente mais maravilhoso que Deus me deu. Nasci homem, mas sou mulher. Todo mundo aqui sabe disso. Já errei muito nessa vida, seu Papa, mas depois que eu conheci o Zé, eu vivo uma vida digna e decente como qualquer outra mulher. Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa. Já me batizei, fiz a primeira eucaristia, a crisma, agora só falta realizar o meu maior sonho que é casar na Igreja. E eu sei que só o senhor pode autorizar isso. E é por isso que estou lhe escrevendo essa carta. Pra pedir ao senhor que conceda permissão ao padre João Manuel para que ele possa fazer o meu casamento. E, assim, me tornar a mulher mais feliz do sertão."

Vamos combinar que não poderia ser mais comovente o instante em que Paloma (Kika Sena) dita à sua amiga Kelly (Wescla Vasconcelos) uma carta com esse pedido singelo: o de poder casar. Com véu, grinalda, Igreja decorada e tudo que se tem direito. Como mulher trans, ela já está familiarizada com as barreiras impostas pela própria Igreja e seus dogmas um tanto ultrapassados - e que, em tempos de ódio, de preconceito e de intolerância como os da atualidade (reforçados pelo recente governo de morte de Bolsonaro), parecem mais vivos do que nunca. Só que Paloma é uma mulher devota. Ela sequer pode entrar na Igreja, numa daquelas contradições legítimas do Brasil - esse País conservador e cheio de fé, capaz de converter pessoas periféricas e minorias em admiradores ardorosos da extrema direita, das elites e de outras instituições poderosas. Por quê Paloma, como mulher negra, nordestina, trans, analfabeta e pobre deseja tanto se casar da forma mais tradicional possível? 

 


Talvez o que esteja em jogo para ela seja o processo que a reafirmaria como mulher. Dotada de direitos e capaz de realizar sonhos - como o do casamento. Então, quando a nossa carismática protagonista encosta seu rosto anguloso, de olhar expansivo e de sorriso sonhador, no batente da porta para ditar a sua missiva, a gente apenas está torcendo para que sua intenção seja atendida. É um instante afetuoso, em partes divertido - Kelly reclama da amiga, pede pra que ela não dite tão rápido por que ela "não é uma máquina de escrever". E o poder desse filme de Marcelo Gomes - dos excelentes Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar (2019) é o de despertar em nós também a empatia. A capacidade de olhar o outro como um ser humano. Que tem sonhos, incertezas, medos, desejos. Que ama. Ama como Paloma ama a sua adorável filha. Seus amigos e amigas - especialmente as gurias do bordel, com que se sente confortável em suas dores. O marido Zé (Ridson Reis). É um filme de Brasil: de terra e de seca, mas também de carne e de alma.

E Paloma permanece o filme inteiro na luta determinada pra tentar juntar dinheiro pra consolidação do matrimônio. Como peoa que trabalha na colheita de mamão, ela parece ser mais cobrada pelos seus empregadores. Os olhares parecem sempre mais voltados à ela. Nas ruas, os comentários debochados ao fundo. No bar local a violência que emerge do nada. Na Igreja, a impossibilidade de sonhar. Em casa, as dúvidas. Pra quem convive com o preconceito, esses elementos parecem apenas integrar a paisagem. O cotidiano. A rotina. Ela vai apenas se acostumando, ainda que a violência pareça sempre se avizinhar. Por isso que talvez ela ceda diante do assédio de um motorista de caminhão. Até que ponto dá pra enfrentar uma série de humilhações e de injustiças e de ainda levantar a cabeça ao ver o direito de simplesmente amar alguém ser negado? Essas incertezas também pairam no entorno. E afligirão outras pessoas. O que comprovará que o casamento em si talvez seja o menor dos problemas. A questão central está em fazer a sociedade compreender. Acolher as diferenças. Sair da hipocrisia e do reacionarismo tacanho. E, assim, evoluir.

Nota: 9,0


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