quarta-feira, 22 de março de 2023

Novidades em Streaming - Alcarràs

De: Carla Simón. Com Jordi Pujol Dolcet, Ainet Jounou, Josep Abad, Xenia Roset e Berta Pipó. Drama, Espanha, 2022, 120 minutos.

Agricultura familiar x agronegócio. Êxodo rural x sucessão. Tradição x modernidade. São muitos os antagonismos que surgem, sutilmente, no bucólico Alcarràs - vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2022 e enviado da Espanha para a mais recente edição do Oscar, que está disponível na plataforma Mubi. Dirigido por Carla Simón - do igualmente belo Verão 1993 (2017) - esta é daquelas obras em que até parece que não tem muita coisa acontecendo, mas que ganha força justamente por apresentar as complexidades da vida no campo (e das relações familiares dentro desta) de forma extremamente orgânica, naturalista. Aliás, poucas vezes assisti a um filme sobre as dificuldades (e burocracias) que envolvem a rotina de uma família de produtores - no caso, os Solé - que fosse tão realista. É época da safra de pêssego em uma pequena propriedade da Catalunha e todos, de avós a netos - além de peões - estão ocupados com a colheita.

Mas essa rotina idílica, ainda que exaustiva, não demorará a ser quebrada: arrendatários das terras que ocupam, os Solé não possuem nenhuma documentação que comprove a posse dos lotes que usam pra cultivar as frutas - que teriam sido concedidas pelo proprietário em uma espécie de troca de favores que remonta ao período da Guerra Civil Espanhola. Sem a formalização eles perdem qualquer possibilidade de barganha quando o filho do dono anuncia o desejo de retomar o terreno (após a morte do pai) para a instalação de uma usina de energia fotovoltaica (com dezenas de placas solares). De mãos atadas, o patriarca da família, Rogelio (o veterano Josep Abad), tenta todo o tipo de negociação possível - o que envolve cestas de produtos orgânicos oferecidos como presente e até mesmo a entrega de figos de uma figueira antiga que teria sido plantada pelos antepassados. Tudo em vão. Ao que tudo indica aquela será, de fato, a última safra. Restando esperar, em meio a série de pequenas lutas (e mesmo disputas) familiares ou não.



Ao cabo, o que vemos aqui é uma verdadeira colcha de retalhos, com a câmera indo e vindo de um personagem à outro dessa numerosa família. Não bastasse o enorme "pepino" que eles precisam resolver, no foro íntimo também haverá uma série de tensões, de discussões, de brigas que levarão a situação ao limite - muitas delas protagonizadas por Quimet (Jordi Pujol Dolcet), que encarna o agricultor esforçado, com sua onipresente camisa xadrez, de forma absurdamente realista. Aliás, se alguém me dissesse que ele é, de fato, fruticultor, eu acreditaria. Já a sua irmã Gloria (Berta Pipó) precisa lidar com o marido meio magalão Cisco (Carles Cabos), que mantém uma dúzia de pés de maconha escondidos em meio a um milharal, que é cultivado em parceria com Roger (Albert Bosch), o filho mais velho de Quimet. Há ainda outras duas filhas, a adolescente Mariona (Xenia Roset), além da pequena e graciosa Iris (Ainet Jounou), que movimentam a narrativa com as suas preocupações comezinhas, meio típicas da juventude (uma dança que deve ser realizada na festa local ou mesmo brincar com os primos).

Muita coisa acontece e Quimet ainda precisa lidar com uma série de protestos por melhores preços aos agricultores, num movimento que parte da Cooperativa da qual a família faz parte. Nesse sentido, o realismo não reside apenas nas cenas do pomar, da colheita, do manejo, da irrigação e da rotina, com tratores e outros equipamentos (a verossimilhança é incrível). É nos pormenores que a experiência ganha força, nas conversas que vão pelos cantos, nos acontecimentos que saem das frestas e na necessidade de que haja, ao cabo, um mínimo de senso de união para que todos possam sair bem dos percalços - e talvez seja por isso que a sequência de galinhagem a beira da piscina, durante um almoço de família, seja tão emocionante. Ao cabo a gente passa, aos poucos, a se importar com todos aqueles que vemos - trata-se afinal de um coletivo de pessoas complexas, de personalidades múltiplas, nunca óbvias. Meio que não se sabe o que esperar para além do sacrifício cotidiano, que precisa lidar com a tecnologia e com a modernidade que bate à porta (e que tenta lhes envolver, o que também fraturará a aliança familiar). Contemplativa, vibrante, ensolarada e autêntica, mas que utiliza seu microcosmo para uma análise mais ampla da sociedade, a obra funciona mais ou menos como os painéis solares que geram tanta discórdia - reservam energia, resgatando-a de onde nem parece haver. Um achado.

Nota: 8,5


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