segunda-feira, 3 de julho de 2023

Novidades em Streaming - Contratempos (À Plein Temps)

De: Eric Gravel. Com Laure Calamy, Lucie Gallo, Cyril Gueï e Anne Suarez. Drama, França, 2021, 87 minutos.

Em uma das cenas centrais de Contratempos (À Plein Temps), a protagonista Julie (a sempre ótima Laure Calamy) está em uma importante entrevista de emprego. Durante a conversa, a recrutadora estranha o fato de ela morar em um bairro afastado do centro de Paris e, mesmo sendo mãe de duas crianças, estar pleiteando um emprego ali. "Você poderia passar longos dias por semanas por aqui, mesmo morando tão longe?" questiona a funcionária do RH. Julie nem titubeia em afirmar que isso não lhe preocupa. A avaliadora prossegue, tentando compreender uma lacuna existente no currículo da candidata - quatro anos sem trabalhar, o que evidencia também um processo de precarização (já que ela possui um emprego em um hotel, como supervisora de serviços gerais). O que se soma a perguntas sobre ela estar buscando uma vaga que está claramente abaixo das capacidades dela. Ela afirma que não. Que está focada na realização de seus projetos "a longo prazo".

Julie tenta não demonstrar, mas no momento da entrevista ela está devastada por dentro. Está em um trabalho que lhe consome física e psicologicamente - não bastassem as horas e horas dentro de ônibus e trens, ainda precisa lidar com o assédio moral constante de sua chefe e com os caprichos excêntricos dos hóspedes do hotel de luxo em que atua (em uma sequência ela precisa, literalmente, limpar a merda que foi deixada em um dos cômodos por um desses visitantes). Aliás, só mais uma das tantas e ótimas metáforas apresentadas nessa pequena joia dirigida por Eric Gravel - e que foi exibida (e elogiada) no Festival Varilux do ano passado. Depois, há a angústia de, como mãe solo, ter de articular de forma permanente a estada de seus filhos em babás improvisadas - caso de uma vizinha - para que ela consiga cumprir as suas exaustivas jornadas. Julie está sempre correndo. Correndo literalmente. Sem dinheiro, sem ânimo, sem forças, sem vida.

Ao cabo, esse é um filme pequeno mas de grande força sobre como o capitalismo pode destroçar a cabeça do cidadão comum - que acorda de madrugada e retorna já para sua casa noite adentro, depois de andar de condução em condução até desejar apenas a sua cama. Dia após dia, indefinidamente. É uma produção que exaure - um sentimento ampliado pela câmera sempre urgente, meio trôpega, quase documental e pela trilha sonora caótica, invasiva, que acompanham as andanças de Julie entre cômodos do hotel, ruas atabalhoadas, assédios diversos (inclusive sexuais), humilhações recorrentes e a sensação completa de solidão e de desesperança em meio a tudo. Aqui, não vemos a Paris glamourosa que nos acostumamos a enxergar nos cartões postais. É tudo sufocante, claustrofóbico, cansativo. Quando a protagonista chega em casa já exaurida, precisa encarar o terceiro turno, a janta das crianças, o banho, brincar. Para, de madrugada, reiniciar tudo de novo.

E de alguma forma não deixa de ser meio simbólico o fato de, durante toda a via crúcis de Julie nessa uma hora e meia, ela ser "atrapalhada" por uma greve dos metroviários que parece estar ocorrendo no entorno. O filme nunca se ocupa das reivindicações dos trabalhadores, quais as pautas, por quê estão paralisando os serviços. Para nós, espectadores, talvez seja cômodo pensar que Julie poderia se unir a estes operários. Lutar contra o sistema que lhes oprime (ela está junto nesse combo). Mas ela não tem tempo de pensar nisso. Em política. Em economia. Em caos social. Em disputas de classes. Em governos. Ela tem duas bocas pra alimentar. Uma pensão pra reivindicar - outro ponto que lhe extenua. Um trabalho para manter - em meio a camas pra arrumar, quartos pra limpar, horários a cumprir. É um ciclo infinito, que não parece se encerrar na suposta "boa notícia" que ocorre no instante derradeiro da projeção. A roda seguirá girando. Pode até não parecer, mas o sorriso comovido não simboliza final feliz. E aqui está a grande sacada dessa história toda. Sensacional é pouco.

Nota: 9,0


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