sexta-feira, 15 de julho de 2022

Cinema - Crimes do Futuro (Crimes of the Future)

De: David Cronenberg. Com Viggo Mortense, Léa Seydoux, Kristen Stewart e Scott Speedman. Ficção científica / Drama, Canadá / Grécia / Reino Unido, 2022, 107 minutos.

Vamos combinar que é um tipo de prazer meio excêntrico acompanhar certos filmes do diretor David Cronenberg. É como se o nosso inconsciente fosse "invadido" e, lá dentro, todas as esquisitices que habitam a nossa mente fossem misturadas, com o resultado dessa experiência sendo algo tipo esse Crimes do Futuro (Crimes of the Future). Isso não significa que exatamente essa história esteja escondida lá nos recantos da nossa imaginação - talvez não houvesse criatividade suficiente para esse tipo de construção. Mas os seus temas e a tentativa de explorá-los, de propor inferências, é algo que certamente nos ocupa, nos mobiliza. Enfim, mexe conosco. Quem nunca pensou, por exemplo, onde chegará a tecnologia? E a medicina? E quais serão os limites da modificação corporal em tempos de harmonização facial e de outras cirurgias plásticas que vão limite do bizarro? E a evolução da genética? A cura para doenças? Os hormônios? A busca incansável pelo padrão de beleza? Os protocolos de saúde que deveriam preservar a nossa "casca"? E a ética em meio a isso tudo?

Em certa altura dessa joia do cinema, que bebe na fonte do subgênero que se convencionou chamar de body horror - aliás, uma vertente bem característica do Cronenberg dos anos 80, como nos casos de Videodrome (1983) e A Mosca (1986) -, um dos personagens centrais reflete: "estamos evoluindo para longe do caminho humano". É como se a cada avanço da ciência nos afastássemos, em alguns casos, daquilo que somos na essência e que nos constitui como humanos: pele, carnes, tecidos, vísceras, sangue. No filme, que se passa em um futuro apocalíptico próximo (ou nem tanto) - cenário em que um navio revirado na costa de uma enseada é apenas parte do contexto -, a espécie humana avançou de tal forma, que é capaz de gerar espontaneamente novos órgãos. Que são reflexo de mutações, de transformações, oriundas de um ecossistema totalmente sintético que está na volta. O que inclui camas com tentáculos (a orchidbed), cadeiras adaptáveis e outras engenhocas que leem o corpo, o alteram e ainda suprem o organismo de algum tipo de prazer - como se fizesse parte dele, de alguma forma.


Não é por acaso que tantas vezes durante o filme somos lembrados que a "cirurgia é o novo sexo". A invasão agora é outra. O prazer idem. Em dado momento os parceiros (são um casal?) Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) estão deitados em uma cama de autópsia de nome Sark, enquanto bisturis encenam um balé que lhes abre a pele, lhes viola, com a dupla ensaiando gemidos, sussurros e movimentos ondulantes que parecem acenar para esse novo formato de relação. "Eu não sei fazer sexo na forma antiga", indica Tenser à Timlin (Kristen Stewart), uma representante de um órgão estatal conhecido como Registro Nacional de Órgãos. Uma Instituição que pretende regularizar a questão dos novos órgãos sem uma função muito definida - o que não seria exatamente o caso de Tenser, já que ele utiliza essa capacidade de geração para, ao lado da cirurgiã especializada Caprice, realizar performances artísticas em que faz exibições de remoção dessas partes corporais exóticas. Atraindo olhares - e flashes - de muitas pessoas.

Discutindo uma série de questões filosóficas e complexas sobre pós-humanidade - e esse avanço que parece substituir o aparato biológico pelo tecnológico, que transmuta a natureza para novas variedades de protótipos corporais -, o filme ainda é um prodígio técnico, com a distopia sendo desenhada como um ambiente permanente sombrio, soturno, escurecido (não há um raio de sol em momento algum ou uma cor mais viva que seja). Os figurinos acinzentados, pálidos, de cores únicas e pouco criativas, formam um tipo de contraste daquilo que se imaginaria o futuro colorido, plural. É tudo triste, claustrofóbico, melancólico, desalentador. Há um certo niilismo no entorno. Um pessimismo que avança pelos cantos. Mas que ao mesmo tempo, de forma paradoxal, combina com o espírito hedonista, exibicionista dos tempos que vivemos - de busca por aceitação e de individualidade, mas também de desequilíbrios ambientais, de pandemias e de guerras. Como alegoria da intervenção dos corpos pelo Estado - uma percepção meio lateralizada, mas possível -, a experiência também funciona. Aliás, tem um timing impressionante.

Ao cabo, é uma obra que talvez possa ser de difícil digestão. Lenta, meio agonizante - assim como é o comportamento taciturno de Tenser, sempre com o seu olhar cabisbaixo, com a voz rouca, com o pigarro persistente. A dramaticidade exagerada de algumas sequências também poderá gerar algum tipo de perturbação: há um grafismo forte nas tomadas dos órgãos, esses "objetos" meio disformes, indefinidos, que se assemelham a tumores - aliás, não seriam tumores? Já os personagens secundários trafegam pelo entorno como figuras igualmente perturbadas, que tentam sobreviver nesse ambiente funesto, mas ao mesmo tempo anódino - como no caso de Lang Lotrice (Scott Speedman), pai de um menino morto pela própria mãe, em uma medida desesperada para combater um tipo de patologia que acomete o filho e lhe faz ser capaz de consumir alimentos puramente sintéticos (como plásticos). É bastante coisa pra pensar, pra refletir - e isso que o filme até alivia no debate político sobre o uso do corpo (ainda que referencie a importância da "beleza interior" como uma metáfora viva). E, nesse sentido, não dá pra reduzir o filme ao mero sensacionalismo. Perto de completar 80 anos, Cronenberg segue mantendo o cinema experimental vivíssimo. Pulsante! Tal qual os órgãos que enxergamos de forma incômoda na tela.

Nota: 8,5

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