Uma velha caminhonete cruza o sertão nordestino. Em meio a estradas curtas e arenosas o barulho de motor se mistura com o zumbido dos insetos. O calor escaldante é palpável. A aridez é opulenta, em meio a uma vegetação rala, disforme, sem vida. O suor que escorre do rosto. A água e a gasolina escassas. A caminhonete e seu motorista - um alemão de nome Johann (Peter Ketnath) que está no Brasil para fugir dos horrores da Segunda Guerra - persistem. Tentam chegar em algum lugar, em meio ao nada. E no nada encontrarão um caroneiro. Na forma que o diretor Marcelo Gomes apresenta o preâmbulo do espetacular Cinema, Aspirinas e Urubus, há uma palpável sensação de desalento que percorrerá toda a película. Um Nordeste difícil, seco, distante. Tão distante que a "guerra não alcança", como constatará mais tarde Ranulpho (João Miguel), o seu involuntário parceiro de negócios (e de viagem). O caroneiro em questão.
Septuagésimo quinto melhor filme brasileiro da história, de acordo com votação feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), Cinema, Aspirinas e Urubus é uma obra sobre amizades improváveis, que podem brotar em locais mais improváveis ainda. Mas é também um filme sobre resiliência (ou perseverança) em tempos difíceis. E até mesmo sobre a esperança por dias melhores. E, talvez ainda e em menor medida, essa verdadeira obra-prima do nosso cinema nacional possa ser considerada uma verdadeira homenagem a sétima arte em si. E não apenas pela película possuir uma atmosfera artisticamente superior, mas também pelo caráter mágico que se estabelece na relação entre os moradores dos pequenos povoados visitados por Johann e Ranulpho, quando colocados diante dos filmes publicitários que pretendem vender a aspirina - uma novidade que, aos poucos, começava a chegar ao País.
É muito provável que muitos moradores gastassem os seus parcos contos de réis em um remédio que prometia milagres, muito por conta da comoção causada pelos filmes publicitários exibidos por Johann - esse, no caso, é o "Cinema", do título. E, não por acaso, considero bastante comovente a sequência em que um morador de um dos tantos povoados visitados pela dupla protagonista, solicite que o filme seja repetido, de tão maravilhado que este está (e a homenagem ao cinema prossegue nas cenas em que, secretamente, Ranulpho investiga os equipamentos utilizados por Johann em suas exibições, os rolos de filme, o cinematógrafo, entre outros). São instantes em que pequenos choques de realidade se estabelecem de forma contrastante, assim como é contrastante o cenário de guerra que ocorre na Alemanha, com a aridez do Nordeste, a fome, a sede, a falta de provisões.
Nesse sentido, o filme se estabelece como uma série de instantes em que, de povoado em povoado, Johann e Ranulpho conhecerão outras pessoas, que lhes ajudarão nos momentos de dificuldades (como na cena em que o alemão é picado por uma cobra), lhes darão de comer, lhes bajularão (sempre haverá um empresário ambicioso de olho no negócio) e lhes "amarão". No meio do caminho um encontro com a retirante Jovelina (Hermila Guedes), pequenas mudanças de rota, idas e vindas e a certeza de que uma amizade se fortalece em meio a um cenário inóspito. E tudo isso, é preciso que se diga, dá conta da força de um filme que parece pequeno, mas que fala "grande" quando o assunto é a abordagem do absurdo da guerra - que faz com que um alemão prefira se esconder nos confins do Brasil, já que ali não "caem bombas".
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