segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Novidades no Now/VOD - Uma Vida Oculta (A Hidden Life)

"...o bem crescente do mundo depende, em parte, de atos não históricos; se as coisas não vão tão mal para nós como poderiam ter ido, metade devemos àqueles que viveram fielmente uma vida anônima e repousam em túmulos que ninguém visita."

(George Eliot)

De: Terrence Mallick. Com August Diehl, Valerie Pachner, Sophie Rois e Bruno Ganz. Drama / Romance, Alemanha / EUA, 2020, 175 minutos.

Quem gosta da filmografia de Terrence Mallick (de A Árvore da Vida) vai se deleitar com Uma Vida Oculta (A Hidden Life), afinal, todas as características das obras do diretor estão lá - do clima vagaroso e envolvente da narrativa até os cenários vivos e bucólicos o filme é, ainda, um primor do ponto de vista técnico. Há, como de praxe, um carinho todo especial por aqueles personagens que acompanhamos, com a câmera trafegando entre eles como se fosse uma espécie de bem-vindo observador a espionar seus comportamentos afáveis, seus diálogos espirituosos, num indo e vindo em que campos verdejantes de trigo se alternam com crianças pequenas correndo nos potreiros. Aliás, a forma de Mallick criticar a aspereza do mundo - e, aqui, neste caso mais específico, o absurdo da guerra -, é sempre elegante, contemplativa, sem pressa. Como se a brutalidade estivesse instalada em um outro local e que valesse o empenho em favor de uma vida elegíaca, em um cenário idílico, longe da morte, do sangue e dos conflitos sem sentido. A vida em família ideal: com ternura, carinho, compaixão, empatia, abraços, beijos e afagos.

Baseada em fatos reais, a obra volta para a Áustria rural do final dos anos 30, no período em que se inicia a Segunda Guerra Mundial, para mostrar uma família de agricultores que vive em perfeita comunhão com a natureza, produzindo alimentos para sobreviver em meio a um cenário de florestas, rios, montanhas e estradas, casinhas, estrebarias e igrejinhas, que formam o combo de uma vida quase idealizada. Só que o nazismo se avizinha e os homens das famílias têm sido convocados para lutar ao lado do exército alemão, sendo exatamente este o caso de Franz (August Diehk), que deverá deixar a esposa Fani (Valerie Pachner) e os três filhos para trás para participar do projeto genocida imaginado pelo Führer. Só que, para Franz, isso significa ir contra tudo aquilo que ele acredita e que demonstra em seu comportamento afável em todo o filme. O resultado? Ele se recusa a aceitar a convocação, tornando-se preso político para ser condenado, mais adiante, por traição à Pátria.


De forma bem resumida, Uma Vida Oculta pode ser encarado como um belíssimo líbelo antiguerra, que ainda traz uma importante mensagem sobre a manutenção das convicções na tentativa de tornar este um mundo minimamente melhor para quem nele permanece. Franz poderia ter sucumbido as pressões e estaria livre. Mas sob qual preço? Oprimir judeus? Matar minorias? Assassinar estrangeiros ou aqueles tidos como diferentes? No pequeno povoado em que vive, o protagonista acaba se tornando uma espécie de pária momentâneo: a comunidade lhe renega. Ele e sua família são proibidos de, sequer, entrar na capela - aliás, não chega nem a surpreender o comportamento da Igreja na guerra, que, sem cerimônia, se coloca ao lado do regime nazista. Quando o prefeito aparece, é para lhe pressionar. Todo esse clima de inconstância vai sendo instalado aos poucos na narrativa, numa série de pequenas sequências com vizinhos e parentes que não hesitam em demonstrar sua contrariedade, enquanto a família permanece convicta em suas crenças. Sabe quando você mora em uma cidade em que a maioria das pessoas votaram no Bolsonaro, são adeptas da extrema-direita mais abjeta e você é uma pessoa progressista, de esquerda? Guardadas todas as proporções - estamos falando da guerra, afinal -, o sentimento é exatamente esse.

Uma das maiores críticas ao filme tem sido a sua longa metragem de quase três horas e eu admito que uma pequena passadinha na ilha de edição poderia ter ajudado Mallick a não conceber tantas sequências repetitivas e até excessivamente expositivas. Mas, confesso, a mim, a mensagem acabou por ser ainda mais fortemente "martelada", com a espera infinita por alguma notícia (ou mesmo pelo anúncio do fim dos conflitos), gerando um sentimento ainda mais revoltante diante do absurdo daquilo que acompanhamos. Em certa altura Fani renova suas esperanças, dizendo que eles são apenas agricultores e as pessoas do mundo "precisam comer, não?". Sim, precisam. Mas se você for contrário ao regime, não importa se é agricultor, médico ou padre: nos regimes totalitários parece haver apenas um destino. "Melhor sofrer as injustiças do que promovê-las", se esforça em anunciar a mãe do protagonista a certa altura, tentando esfregar para quem talvez não tenha entendido, qual o lado certo naquele contexto de abuso. E se há algo a celebrar enquanto as lágrimas escorrem ao final do filme, é o fato de que a luta silenciosa de muitos anônimos, pode ter contribuído para que, na atualidade, a gente sofra menos do que naqueles tempos. O sino toca. As pessoas despertam. É um filme belo, poético, potente e necessário.

Nota: 9,0

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