quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Tesouros Cinéfilos - Assunto de Família (Manbiki Kazoku)

De: Hirokazu Koreeda. Com Lily Franky, Jyo Kairi, Sakura Ando, Mayu Matsuoka e Kirin Kiki. Drama, Japão, 2018, 121 minutos.

O conceito de família como um "núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária" é totalmente reconfigurado no excelente Assunto de Família (Manbiki Kazoku) - último vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e que se apresenta como uma obra cheia de nuances, de poesia e de surpresas. A história começa quando o trambiqueiro Osamu (Lily Franky) está voltando para casa com seu filho Shota (Jyo Kairi) após um furto bem sucedido feito em um mercado. No caminho eles se deparam com uma garotinha miserável de nome Yuri (Miyu Sasaki) e resolvem, dadas as condições paupérrimas de sua existência, levá-la junto para a sua casa. Após saber das dificuldades que a menina de apenas quatro anos enfrenta, eles decidem permanecer com a pequena, alimentando-a, educando-a e transformando-a no mais novo integrante da família. Uma espécie de "sequestro do bem" - se é que isso é possível.

Osamu, sua esposa, a cunhada, uma avó e Shota já vivem em condições pouco habitáveis. No pequeno barraco em que moram, comem juntos, dormem juntos no mesmo ambiente em que se acotovelam (e se cuidam), se revezando em atividades gerais que lhe possibilitem alguma renda. A jovem Aki (Mayu Matsuoka), por exemplo, é uma espécie de prostituta de luxo em uma excêntrica casa em que homens pagam para observar meninas. Nobuyo (Sakura Ando), a esposa de Osamu tem o seu emprego de assalariada, mas a pobreza material reina, ao passo que o bom humor com que encaram as adversidades, o otimismo latente, forma um comovente contraponto. Que nos faz pensar justamente sobre os conceitos de riqueza e de pobreza e mesmo do real sentido da palavra "família", já que claramente a pequena Yuri nunca recebeu tanto carinho, afeto e atenção como no meio de seus novos "parentes".


Como é de praxe na filmografia do diretor Hirokazu Koreeda, a relação de pais e filhos, com a presença de crianças tentando sobreviver em um mundo de contrastes é um dos pontos centrais da narrativa. Mas não é só isso. Ao discutir até que ponto podemos considerar como nossa "família" apenas aqueles que possuem o mesmo sangue do que a gente, o realizador reserva uma gratíssima surpresa para o espectador conforme ele percebe que aquele excêntrico núcleo não é necessariamente o que parece - com as relações entre eles sendo muito diferentes daquelas que imaginávamos. E isto, inegavelmente é um dos charmes da narrativa, sendo praticamente impossível não torcermos para que eles permaneçam juntos, unidos e dedicados, mesmo quando agentes da lei aparecem para investigar parte das ilegalidades cometidas por aqueles que acompanhamos.

Trata-se de uma obra densa e leve em igual medida, nos arrancando lágrimas de enternecimento e sorrisos de canto de boca o tempo todo. Há algum tipo de inevitável estranhamento emanado muito mais pelas diferenças culturais do que necessariamente pelos atos dos personagens - havendo, aqui e ali, poucas variações entre as atitudes de ocidentais e orientais diante de situações limite. Cada abraço, cada aconchego, cada banho de chuva (ou de rio) inesperado ou mesmo uma conversa prosaica sobre puberdade entre pai e filho ocasionais são acompanhados por uma câmera que vai rente e de uma fotografia granuladamente naturalista capaz de transformar a disfuncionalidade em empatia. A gente se apaixona por aqueles que assistimos e deseja o melhor para todos. De preferência juntos, ainda que as eventuais crises de consciência possam modificar o destino. Família a gente não escolhe afinal? Não para Osamu e companhia.

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