sexta-feira, 24 de julho de 2020

Livro do Mês - Torto Arado (Itamar Vieira Júnior)

De: Itamar Viera Júnior. Editora Todavia, 2018, 266 páginas.

Um olhar minimamente atento ao Brasil de hoje nos faz perceber que o País, de fato, nunca deixou de ser desigual. A escravidão supostamente abolida, por exemplo, jamais significou efetivamente um reequilíbrio de forças entre extratos sociais bastante discrepantes. Aliás, ao contrário: em um território político em que quem dita as cartas, atualmente, são as bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia - legitimadas por um Presidente delirante -, não chega a ser exatamente uma novidade o massacre às camadas mais vulneráveis, de pretos, de pobres, de povos indígenas, de quilombolas, pescadores, agricultores familiares, entre outros. Nesse contexto religiões são marginalizadas. A cultura de povos tradicionais é perdida, surrupiada. Instituições são fragilizadas e deixam de contribuir para o fortalecimento do debate de pautas identitárias e de minorias que não detém o capital, - que lutam nas bordas, que erguem enxadas para produzir alimento. Trata-se, ao cabo de um Brasil que insiste em permanecer no passado. Que estabelece novas formas de escravismo, novos padrões para aquilo que sempre aconteceu. E que segue acontecendo.

Torto Arado, romance inadiável do baiano Itamar Vieira Júnior - vencedor do Prêmio Leya em 2018 - lança um olhar para esse Brasil agrário, esquecido, abandonado. Um País em que senhores oligarquicamente engravatados decidem rumos a portas fechadas, exaurindo seus povos, enquanto aumentam suas riquezas as custas das dores, do suor e do sangue de muitos. É nesse universo que o escritor mergulha com sua literatura direta e cheia de virtudes, grandiosa sem ser empolada. Há uma densidade naquele contexto árido do sertão baiano que é tão palpável quanto as dores sentidas pelas irmãs Bibiana e Belonísia, que abrem o livro como crianças curiosas que descobrem uma velha e misteriosa faca em uma mala guardada embaixo da cama da avó. E que resultará em um acidente que modificará a vida delas - ambas filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos - para sempre.


Há naquele contexto em que ambas crescem uma extenuante rotina no campo que envolve produção de alimentos para autoconsumo, participações eventuais em feiras e muitas restrições feitas por senhores de escravos travestidos de empresários. E em meio as tradições afro-brasileiras, seu folclore regionalista, suas velas, crenças, ladainhas, "encantamentos" e toda uma nomenclatura própria, haverá a absorvente vida familiar e as descobertas diversas que misturarão várias formas de consciência. Nesse sentido, ao passo que Belonísia se estabelece como verdadeira "força da natureza" (como se fosse parte da terra), não demorará para que Bibiana passe a perceber o contexto de opressão em que sua família vive: obrigada a sobreviver numa terra que não é sua, sem direitos ou garantia alguma. E que se modificará para sempre a partir da decisão pela luta e pela emancipação dos trabalhadores rurais, numa narrativa riquíssima em figuras de linguagem bucólicas, resultado de uma prosa harmoniosa, conduzida quase em sua totalidade pela força das mulheres que enfrentarão, também, o paternalismo incrustado.

Em uma entrevista à booktuber Litera Tamy, Vieira Júnior disse que o livro é um romance de formação, "história humana, de um Brasil que resiste, mas que está cada vez mais afastado das pessoas que vivem nas grandes cidades". Assim, o próprio título que remonta ao "arado torto" visto em um antigo livro do arcadista Tomás Antônio Gonzaga, funcionará como equipamento que evoca contrastes entre uma agricultura a cada dia mais mecanizada, mas que encontra no trabalho dos povos tradicionais o simbolismo da terra "rasgada" de forma mais rústica, como uma espécie de símbolo de resistência, que coloca a natureza (e o barro) em confronto com o urbano. Na realidade, trata-se de um livro que pontua bem essas dualidades, essas contradições que envolvem esses muitos "brasis" e que também estão nas presentes nas protagonistas. "Todos nós temos o bem e o mal dentro da gente [...] e as irmãs vão ter isso dentro delas muito demarcado, com ou sem controle, o que poderá resultar em um desfecho trágico, sem que isso signifique exatamente 'bom ou ruim', dando conta da nossa complexidade", analisou. É obra que atravessa vozes, gerações e temas - de memória e traumas familiares, a exploração, ao misticismo e aos laços sociais - e se consolida como uma das mais relevantes publicações brasileiras dos últimos anos. Leia. Para ontem.

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