segunda-feira, 9 de março de 2020

Cinema - Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You)

De: Ken Loach. Com Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone e Katie Proctor. Drama, Bélgica / França / Reino Unido, 2019, 104 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Ken Loach sabe que seu cinema social costuma ser duro, áspero e extremamente realista. Não há desafogo para a paisagem que se estabelece, seja na análise do cidadão comum que luta contra a burocracia de um sistema que lhe exaure, como no anterior Eu, Daniel Blake (2018), seja na abordagem da precarização do trabalho, caso deste Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You). Na trama voltamos um pouco no tempo, mais especificamente para os anos que se sucederam a crise de 2008, que resultou em um sem fim de trabalhadores desempregados. Um destes é Ricky (Kris Hitchen), que adquire (meio a contragosto) uma van para trabalhar de forma autônoma com entregas. Já a esposa Annie (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora, como forma de complementar a renda. Ambos os trabalhos precarizados, sem direitos, com jornadas exaustivas, que chegam próximas das 14 horas diárias.

É o tipo de cenário que a gente enxerga bastante no Brasil do Bolsonaro - e das reformas Trabalhista e da Previdência. Sob a desculpa de manter a estabilidade econômica - o que, dado o frustrante resultado do PIB nacional, já percebemos ser uma falácia (isso era óbvio) -, os trabalhadores assistem as suas conquistas sociais sendo suprimidas, ao passo que devem se submeter a subempregos, sem carteira assinada em que, de quebra, ainda é vendida a ideia de "autonomia" - como se trabalhar mais de 80 horas por semana representasse uma conquista, uma vantagem ou a tão sonhada independência. O que não passa de uma mentira, claro, como perceberemos conforme o filme avança. Com hora marcada até mesmo para URINAR, Ricky conviverá com uma série de metas absurdas, inalcançáveis, sendo vigiado de perto para que não cometa uma falha sequer. Aliás, se falhar, se algo estragar ou alguma entrega não for feita, o prejuízo sairá diretamente do seu bolso. E se ficar doente, é pior: cada dia não trabalho incorrerá em multas estratosféricas, que só pioram, caso não haja substituto para a sua atividade.


E é óbvio que uma jornada tão excruciante, tão massacrante de trabalho para ambos - Annie, por sua vez, chega a cuidar de até seis pessoas enfermas, deficientes ou idosas em seus dias -, respingará no núcleo familiar, que se verá desestabilizado, especialmente pela ausência dos pais. Claramente desgostoso com a situação, o filho mais velho Seb (Rhys Stone) tentará de todas as formas chamar a atenção dos progenitores, seja matando aula, fumando maconha, ou cometendo pequenos delitos. Aliás, não demorará para que o comportamento anárquico do jovem se torne excessivamente intempestivo, o que comprometerá qualquer possibilidade de entendimento entre todos. Já a jovem e doce Lisa (Katie Proctor), uma menininha de apenas 11 anos, se encontrará em meio as tensões domésticas, enquanto tenta, a sua maneira, trazer um pouco da "normalidade" de volta a casa - e talvez por isso que consideremos tão melancólica a sequência em que o chefe de Ricky o proíbe de levar a filha junto para o trabalho.

Filmado com o habitual naturalismo de seu cinema - a fotografia é empalidecida, melancólica -, a obra não faz concessões na hora de nos esfregar na cara o absurdo de um sistema desigual, que torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Lutando para colocar comida na mesa da família (reparem como é triste a cena em que todos conseguem uma refeição melhor, a partir das gorjetas conquistadas por Lisa e que é interrompida pelo chamado de um dos enfermos cuidados por Annie), o núcleo se vê aos poucos destruído, com todos ficando impacientes uns com outros, especialmente a partir da constatação de que as perspectivas estão longe de melhorar. Aliás, a dolorida cena final tem uma dose ainda maior de escárnio, especialmente quando nos damos conta de que, para um autônomo, não existe autonomia alguma: dia sem trabalho é dia sem dinheiro. Dois dias sem trabalho são dois dias sem dinheiro. Mais multas. Mais prejuízos. E mais necessidade de viagens de uber ou de entregas de Rappi de bicicleta, para compensar. Penoso é pouco.

Nota: 9,0

Nenhum comentário:

Postar um comentário