segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Picanha.doc - Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar

Eu vejo a barra do dia surgindo
Pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada
Abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

(Chico Buarque - Quando o Carnaval Chegar)

De: Marcelo Gomes. Documentário, Brasil, 2019, 85 minutos.

Era o ano de 1972 quando Chico Buarque de Holanda lançou a canção Quando o Carnaval Chegar. Ele tinha retornado do exílio, mas suas ações eram observadas de perto pelos militares. Sempre habilidoso com as palavras, utilizou esta, assim como tantas outras músicas, para, metaforicamente, atacar o regime que oprimia a população. O Carnaval, a festa, a cor, a vida e a alegria eram o símbolo para a liberdade política, social e cultural almejada, que tardaria mas chegaria. Quarenta e sete anos depois, o ótimo documentário Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, utiliza expediente semelhante ao tratar a festa máxima de nosso País como um refúgio, um pequeno espaço de celebração para o combalido povo trabalhador do agreste pernambucano. Mais precisamente, para a população de Toritama, que é conhecida por ser a "capital nacional do jeans".

Com ares autobiográficos, Gomes retorna ao local em que cresceu - uma cidadela calma e pacata -, para encontrar um município invadido por um sistema de fabricação industrial de peças jeans, que movimentam a economia, exaurindo sua população. Praticamente em todas as casas de Toritama o que se ouve são máquinas de costura e outros equipamentos, trabalhando por praticamente 24 horas diárias, numa lógica que determina que "quanto mais se produzir, mais se vai ganhar". Com cada peça produzida rendendo de 10 a 20 centavos para o operário, o valor ao final do dia será diferente se a produção for de mil ou de duas mil calças. O que podem representar jornadas de quase 18 horas diárias, em alguns casos. Tudo sem direitos trabalhistas. Sem equipamentos de proteção - o barulho é ensurdecedor. E, o pior, sem nenhuma consciência a respeito do massacre que praticamente os escraviza em troca de algum dinheiro: a grande maioria dos trabalhadores está feliz, por reconhecer o poder de "decidir" sobre aquilo que fará com o seu tempo.



Muito mais do que um filme que denuncia a precarização do trabalho nos rincões brasileiros, a obra parece dar conta do estado de letargia coletiva que move a nossa população. Muitos valorizam a oportunidade de trabalhar, ignorando o mal-estar promovido pelas jornadas exasperantes (e não são poucos os instantes em que a câmera sinuosa do diretor flagrará algum dos moradores dormindo em qualquer canto e em qualquer oportunidade). O cansaço é latente, mas ninguém desanima. Ao contrário: a população de Toritama se orgulha de ser responsável por 20% (pasme!) do mercado nacional de jeans, com 20 milhões de peças produzidas ao ano. Detalhe: o município conta com cerca de 40 mil habitantes. Que trabalharão exaustivamente durante todo o ano, para tentar levantar o dinheiro que lhes possibilite ir a praia durante o Carnaval. Tentar, já que muitos precisarão vender móveis e eletrodomésticos para alcançar esse objetivo. O Carnaval, já dizia Chico, era custoso pra chegar.

No desenvolvimento da película, Gomes utiliza alguns recursos que transformam a obra em uma experiência ao mesmo tempo excêntrica, melancólica e sensorial. O contraste entre os corpos suados dos trabalhadores e as máquinas barulhentas, com os mesmos movimentos sendo repetidos indefinidamente, dão conta da estupidez dos dias que correm sempre do mesmo jeito, e sempre e sempre e sempre (alguns planos-sequência do trabalho ocorrendo chegam quase a gerar alguma angústia e o uso do som nesses instantes é avassalador). Entre as personalidades locais, um homem de nome Léo diverte com as suas divagações sobre tudo, apresentando inclusive um tipo de consciência meio torta a respeito daquilo que se vive em Toritama. Com dificuldade pra falar de seus sonhos - a vida é apenas trabalhar -, a população avança com poucas perspectivas, orgulhosa daquilo que não deveria se orgulhar: de ser escravizada enquanto aguarda o Carnaval chegar. Um filme duro, áspero e sutil que expõe a ideologia neoliberal como um modelo que impede o oprimido de enxergar a própria opressão.

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