segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Tesouros Cinéfilos - Never Rarely Sometimes Always (Never Rarely Sometimes Always)

De: Eliza Hittman. Com Sidney Flanigan, Talia Rider, Sharon Van Etten e Théodore Pellerin. Drama, Grã-Bretanha / EUA, 2020, 101 minutos.

Discutir o tema "descriminalização do aborto" nunca é fácil - aliás, esse último final de semana foi a prova viva disso. É um assunto que suscita um debate fervoroso que costuma colocar de um lado aqueles que acreditam na suposta tese de que a prática se consiste em um crime contrário à natureza e aos "desígnios de Deus" (sim, ainda precisamos lidar com o fanatismo, o delírio da "família de bem" e a terra plana) e de outro aqueles que acreditam na legalização como um avanço científico que possibilita às mulheres a decisão sobre seus corpos - especialmente em casos que envolvam violência, gravidez indesejada ou riscos para a mãe (ou tudo ao mesmo tempo). É tão complexo que em países como os Estados Unidos, a legislação varia de Estado para Estado, com conservadores e progressistas apresentando seus argumentos para a defesa ou condenação da interrupção de uma gravidez. Em muitos países a prática é legalizada. Já em outros, bom... a impressão é de se estar na Idade Média. E no meio disso tudo há as artes que podem nos ajudar a compreender melhor os pormenores que envolvem esse contexto, sendo esse o caso do absurdamente essencial Never Rarely Sometimes Always, o mais recente trabalho da diretora Eliza Hittman (que dirigiu episódios de 13 Reasons Why).

No filme acompanhamos a verdadeira via crúcis da jovem Autumn (Sidney Flanigan) que, ao lado da prima Skylar (Talia Rider), sairá de uma pequena cidade do interior da Pensilvânia para ir até Nova York para tentar - sem qualquer tipo de certeza, pra falar a verdade -, interromper uma gravidez indesejada. Desde o começo fica claro que o provincianismo do local em que mora será uma barreira para Autumn: sem qualquer possibilidade de um diálogo decente, não conseguirá jamais de sua família algum tipo de resposta. Com os colegas de aula e com a comunidade como um todo, o caso é quase pior: na clínica local a atendente tenta lhe demover da ideia de abortar (com a desculpa religiosa, claro, foi Deus que quis). Os colegas de aula praticam bullying, taxando-a de depravada por, vejam só, ter feito sexo aos 17 anos (aah, a culpa católica). Aliás, sexo, como veremos mais adiante, sem consentimento, no caso da gravidez. Única figura que está ao lado dela, Skylar lhe acompanhará nesse mergulho ao desconhecido, em uma cidade grande, em que o medo e a insegurança vão para além de um simples desejo de interrupção a gravidez.


Porque mais do que mostrar com sutileza e inteligência o sofrimento de quem precisa lutar por uma conquista que poderia ser bem mais simples, em um sistema de saúde mais justo - baseado em critérios sociais, políticos e econômicos mais complexos -, o filme serve para nos mostrar que, na realidade, jovens mulheres como Autumn e Sidney sofrem algum tipo de violência - física, psicológica, moral -, praticamente o tempo inteiro. O espectador não precisa de um flashback para saber que a gravidez de Autumn é resultado de algum tipo de agressão e que ela, ao cabo, terá que dar conta sozinha. Aliás, a cena em que é revelado o significado do título original da obra - algo como Nunca, Raramente, De Vez em Quando e Sempre -, é incômoda e profundamente desoladora nesse sentido. E explica de alguma forma que, sim, sequências como a do homem que tenta mostrar o pênis para elas dentro do metrô ou que lhes beijam partes do corpo sem autorização em pleno ambiente de trabalho, servem para nos fazer compreender que banir o aborto é apenas uma violência A MAIS, entre tantas outras sofridas pelas mulheres.

Só que a diretora faz isso de forma muito elegante. Sim, é um filme duro e elegante. Que tem uma fluência narrativa meio vagarosa, uma fotografia acinzentada e granuladamente melancólica, que se mescla à trilha sonora das ótimas Julia Holter e Sharon Van Etten (aliás, prestem atenção a ela atuando!), para formar um conjunto de grande densidade, sobre um assunto mais do que necessário. Aliás, cada vez mais necessário. Inteligente, a obra joga luz as pequenas inseguranças de duas adolescentes que ainda não sabem direito que decisões tomar na vida - observem a maratona para comprar um bilhete de metrô -, e que precisam, sem suporte algum da família, ou do Estado, escolher entre ser ou não mãe em uma sociedade que romantiza a maternidade e demoniza o oposto, mesmo em casos de gravidez completamente indesejada - e não esqueçamos que a protagonista, assim como muitas meninas, foi vítima de VIOLÊNCIA. Não, não é um tema fácil. Vocês que leem esse texto sabem qual o nosso lado nesse debate. Mas o que Eliza Hittman faz - sim, tomando partido, evidentemente -, é nos fazer refletir. E refletir, se colocar no lugar do outro, ter um pouco de empatia, pode ser o caminho para avanços necessários. E, consequentemente, para uma sociedade melhor.


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