Existe uma frase, dita pela designer de moda Barbara, personagem vivida pela atriz Karine Telles, que resume de maneira não menos do que perfeita a reflexão proposta pelo enredo do espetacular Que Horas Ela Volta?, que agora chega em DVD: tá vendo, o País tá mudando mesmo. A afirmação feita ao marido Carlos (Lourenço Mutarelli) ocorre durante um jantar da família que reside no luxuoso bairro do Morumbi, em São Paulo, quando Barbara descobre que a filha de sua empregada doméstica está vindo para a capital para prestar o vestibular de arquitetura. A empregada doméstica em questão é Val (Regina Casé), que saiu do nordeste há cerca de 15 anos deixando para trás a família - e a própria filha - com o objetivo de tentar a sorte em uma cidade grande. Realidade esta que foi a de muitos brasileiros a até pouco tempo atrás, com índices de inflação e desemprego acachapantes, isso sem falar na pobreza extrema.
Talvez seja essa dura realidade deixada para trás, que faça Val ter a impressão de que, sim, ela talvez tenha vencido. De que ela conquistou aquilo que queria. Que conseguiu um bom emprego, um bom teto e dinheiro suficiente para o envio de certa quantia a filha, que permaneceu em sua terra natal. Val trabalha há mais de dez anos na casa de Barbara - ou dona Barbara ou senhora, como a empregada educadamente a chama, a cada troca de palavras. Tem o seu quartinho, lááá no fundão da enorme mansão, com ventilador barulhento e janelinha que dá pra área de serviço. Mas, no fim das contas, tem os patrões "bondosos" que, como senhores de engenho modernos, lhes conferem casa e comida em troca de incansáveis 12 a 16 horas diárias de louça lavada, chão varrido, grama "aguada", comida feita e educação para os filhos dos patrões. Um acordo tácito em que, claramente, apenas um lado se beneficia. É assim que Val aprendeu como são as coisas.
Eu moro no serviço! Sim, eu moro no serviço! tenta se explicar uma Val angustiada, quando a filha percebe que a mãe não tem sequer casa e que vive na dependência da rica família que lhe emprega. Mas você não tinha dito que era praticamente como alguém da família? rebate a menina, quando se dá conta do local destinado ao repouso da mãe - espaço pequeno, quente, insalubre. Situação que se torna ainda mais impactante quando Jéssica descobre, dentro da mansão, um luxuoso quarto de "hóspedes" com quase 50m². Um quarto desocupado, que só é habitado quando alguma eventual visita aparece. Algo que não parece ser muito frequente. Vale a mesma lógica pra piscina, pra mesa de jantar. Val é da família. Desde que não invada o espaço desta.
Já Jéssica acha tudo isso muito estranho: é curiosa (como ela mesma se define), sabedora de seus direitos e capaz de refletir e inferir sobre os mais variados assuntos, sejam eles as artes, a história ou mesmo a política. Aparentemente com muito esforço pessoal, já que ela passa longe da meritocracia capaz de encaminhar com muito mais tranquilidade os filhos dos mais abastados - que se decepcionam quando estes não são aprovados no vestibular. Enfim, Jéssica é alguém que pensa. Que sabe. Que não é alienada. Que não aceita a condição imposta a Val - como ela a chama durante toda a exibição. E esse comportamento seguro de si e até mesmo transgressor - ao menos diante do cenário de sutil dominação vivido pela mãe - é que gerará o conflito dessa muito bem engendrada obra.
Ao utilizar como cenário o microcosmo de uma família rica que, dadas algumas circunstâncias, passa a ter de conviver de maneira meio forçada com pessoas de classes menos abastadas, Anna Muylaert - dos igualmente notáveis Durval Discos e É Proibido Fumar - realiza um verdadeiro tratado sobre esses "novos tempos" que o País aparentemente vive. Tempos em que os extratos mais humildes podem comer melhor, ter mais educação e acesso a saúde, adquirir bens materiais, casas, carros, andar de avião, frequentar restaurantes e... prestar vestibular de arquitetura em uma faculdade com maior exigência. Hoje é possível pensar para um pouco mais além daquela vidinha de quem já nasce sabendo o que pode e o que não pode - como explica Val a sua filha em outro momento emblemático dessa grande película. Ainda que nem tudo seja um mar de rosas, efetivamente. Com todo o elenco empenhado em entregar um trabalho magistral - com destaque para a tocante interpretação de Regina Casé -, Que Horas Ela Volta? é daqueles filmes que certamente gerará calorosos debates - fazendo com que reflitamos, inclusive, sobre o nosso comportamento no dia a dia. As reais possibilidades para o Oscar 2016 talvez comprovem que as mudanças também possam ter chegado ao nosso cinema.
Nota: 10
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