quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Livro do Mês - O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação (Haruki Murakami)

A apreciação de uma obra de Arte depende muito do contexto em que esta se insere na vida das pessoas. Podemos não estar "no clima" ao assistirmos um filme, por exemplo. Podemos adormecer e deixar passar algo que poderia marcar de alguma forma a nossa existência. Às vezes, anos depois, ao nos reencontrarmos com ele, podemos perceber detalhes marcantes que não havíamos nos dado conta à época, fruto de nossas vivências até então limitadas que nos impediam a uma reflexão mais profunda. No entanto, algumas raras vezes temos a sorte de um livro cair em nossas mãos e, numa feliz coincidência, ter aquela sensação, epifania, de que algo ali é especial e parece feito pra gente. Como se estivesse narrando parte de nossas vidas, a leitura certa no momento certo: como se o autor me conhecesse. E isso aconteceu na leitura de O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação, do japonês Harumi Murakami, lançado em 2014.

“Por mais grave que tenha sido o dano, será que não está na hora de superá-lo? Você precisa ver as coisas que precisa ver, e não as coisas que quer ver. Caso contrário, você vai viver o resto da vida carregando esse fardo”

Explico: assim como o personagem principal, eu também tinha 36 anos no momento em que lia o livro. As sensações vivenciadas pelo "incolor" Tsukuru Tazaki eram muito similares às minhas angústias. O vazio, a autodepreciação, a sensação de não pertencimento. Suas esperanças ou a falta delas. Na trama, Tsukuru é um engenheiro especializado em construir estações de trem que vive atualmente em Tóquio. Dotado de uma personalidade introspectiva, melancólica, de uma certa passividade diante das coisas, vê sua vida ganhar cor ao conhecer e começar a se relacionar com Sara Kimoto, mulher dois anos mais velha pela qual se descobre apaixonado e vislumbrando um futuro mais - com o perdão do trocadilho - colorido. Em uma conversa com Sara ele relata um acontecimento que ocorrera 16 anos antes: o seu abandono (expulsão seria a palavra mais apropriada) por parte de um grupo de amigos da época de escola, sem maiores explicações. Este fato deixa sua pretendente com uma pulga atrás da orelha (como ele seria capaz de seguir em frente sem saber de toda a história?) e estimula Tsukuru a reencontrar-se com os amigos para passar os fatos a limpo e, a partir daí, poder seguir em frente em uma possível relação. A partir do relato por Tsukuru das tentativas frustradas em reencontrá-los, Sara, como boa agente de viagens, promete ajudá-lo a localizar cada um do grupo e finalmente poder encontrá-los para uma conversa que, poderá ou não, trazer certas revelações.


Este grupo consistia de cinco amigos cujos nomes, cada um, significava uma cor em japonês: os meninos eram Amakatsu ("pinheiro vermelho" ou, simplesmente, Vermelho) e Ômi ("mar azul" ou Azul); as garotas Shirane ("raiz branca" ou, simplesmente, Branca) e Kurono ("campo preto", ou Preta). O único que não possuía cor no nome era justamente Tsukuru Tazaki, cujo nome significava "aquele que constrói coisas", o que acabou por refletir na sua profissão e a mudança de Nagoia, sua cidade natal e dos demais amigos, para Tóquio afim de estudar - afastando-o fisicamente do grupo que funcionara como uma irmandade durante muitos anos. O apelido cunhado para ele, "incolor", justamente por não ter nenhuma cor no nome, é uma metáfora bem empregada pelo autor Murakami ao relatar, em sua prosa de leitura simples e fluida, porém poética, todas as nuances de seu personagem principal e a busca por seu lugar no mundo. Acompanhado sempre pelas referências musicais (marca registrada do autor) que, neste livro, é a obra de Franz Liszt "Os Anos de Peregrinação", vemos o percurso do personagem em direção aos referidos encontros onde dores, arrependimentos, catarses, lembranças, virão à tona e contribuirão de variadas formas ao amadurecimento (e à tão fadada busca por autoconhecimento) do personagem.

“O coração das pessoas não está unido apenas pela harmonia. Pelo contrário, ele está unido profundamente pelas feridas. Está ligado pela dor, pela fragilidade. Não há silêncio sem grito desesperado, não há perdão sem derramamento de sangue, não há aceitação sem travessia por uma perda dolorosa”.

Bestseller no mundo todo, Haruki Murakami é um autor bastante cultuado. De extensa produção, pautada por elementos fantásticos, já foi cotado para o Nobel de Literatura. Esta é minha primeira incursão pela obra do autor, e escolhi este livro justamente por ter uma pegada (segundo havia lido) menos fantasiosa e mais "pé no chão" do que suas demais obras. Não me arrependi. Apesar do tema muitas vezes pesado (depressão, melancolia, vazio existencial) a leitura é extremamente agradável e te mantém envolvido e curioso pelos passos seguintes. Confesso que a identificação com o personagem principal contribuiu para a experiência se tornar completa, sendo este, certamente, um dos cinco melhores livros que marcaram minha vida. De passagens belíssimas e profundas (às quais me pego frequentemente relendo) embaladas em uma literatura aparentemente simples, é daquelas obras que te deixam com um calor no peito como se, ao encerrarmos a sua leitura, algo de muito especial permanecerá com a gente. E o final se completa em uma nota certeira: afinal, a vida segue e o que nos resta é a incerteza das coisas e, talvez por isso mesmo, a esperança de dias melhores e a (mesmo que remota) possibilidade de ser feliz. E é tão bom perceber que o crescimento de alguém, fictício ou não, possa nos tornar, consequentemente, alguém melhor.  

"Mas essa dor do peito era necessária, e a sensação asfixiante também era necessária. Ele precisava senti-las. Daqui para frente, ele precisava derreter esse núcleo gelado aos poucos. Talvez levasse tempo, mas era o que ele precisava fazer. E, para derreter esse solo congelado, Tsukuru precisava do calor de outra pessoa. O calor do corpo dele não era suficiente."


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