Hoje em dia não conseguimos conceber a ideia de que prédios públicos não tenham acessibilidade. De que não haja rampas ou outras estruturas que permitam às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida chegar aos locais. Aliás, não só prédios públicos: hospitais, universidades, igrejas. Atualmente há Lei para isso: ela estabelece que "espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação devem estar ao alcance de cadeirantes, com segurança e autonomia". Óbvio que nem sempre foi assim. No Brasil, por exemplo, ela foi instituída em dezembro de 2000. Como qualquer conquista social, foi fruto de muito debate e muita luta para que se chegasse ao atual estágio. Nos Estados Unidos ela é um pouco anterior. E como se chegou a ela na Terra do Tio Sam é o que o ótimo documentário da Netflix Crip Camp: Revolução Pela Inclusão (Crip Camp), mostra.
Na realidade tudo começou em uma espécie de acampamento de verão em que jovens com as mais variadas deficiências - paralisia cerebral, cegueira, tetraplegia ou paraplegia entre outras -, podiam conviver uns com os outros sem o ambiente superprotetor dos pais, com um pouco mais de autossuficiência e num contexto bem menor de preconceito. Vistos pela sociedade como "diferentes", as pessoas que frequentavam o Acampamento Jened - que funcionou entre os anos 50 e 70 - deixavam de lado um futuro moldado pelo isolamento, pela discriminação e pela institucionalização, em um campo quase utópico - uma espécie de Woodstock em que esportes de verão eram praticados, muita maconha era consumida e música era tocada, enquanto casais apaixonados iam surgindo. "Para nós era um universo que não havia no mundo exterior", comenta uma das participantes, entre uma e outra sessão de maquiagem com as amigas.
Mas o que inicialmente eram encontros apenas para diversão e para fuga de um mundo em que todos ali se sentiam totalmente inadequados, seria o embrião de algo maior: o despertar de uma consciência social para a necessidade de mudança. Empoderar pessoas com deficiência era preciso e figuras emblemáticas como a ativista Judy Heumann foram fundamentais nesse processo, em um trabalho que começa "de formiguinha" e que vai ganhando adeptos pelo País entre coletivos progressistas os mais variados - dos Panteras Negras, passando por sindicatos de trabalhadores rurais, até chegar em entidades que lutavam por direitos civis ou nos movimentos antiguerra. Apesar da leveza da narrativa, os diretores James Lebrecht e Nicole Newnham não deixam de mostrar o absurdo que ocorria nas dependências de hospitais psiquiátricos como o de Willowbrook, que escancaravam a necessidade de mudança: até aquele momento os deficientes eram encarados com um misto de medo, pena e aversão e não como... pessoas.
Usando a música e as imagens idílicas cheias de diálogos espirituosos como fio condutor da narrativa, a obra equilibra momentos mais sérios - como os que envolveram os mais de vinte dias em que o coletivo protestou em um prédio do governo, praticamente exigindo do Governo Nixon (um republicano que, claro, complicou tudo), uma posição sobre a Lei da Reabilitação -, até chegar a momentos genuinamente divertidos. Em um deles, um verdadeiro deleite, uma senhora com paralisia cerebral (e mestre em estudos sobre sexualidade humana em pessoas com deficiência), relata como perdeu a "virgindade". Num misto de sinceridade e bom humor, ela menciona uma ida ao ginecologista que lhe diagnostica com uma gonorreia: "nunca me senti tão orgulhosa", ela brinca, sobre aquele que talvez seja um dos maiores tabus entre os PCDs: a discussão da vida sexual. Entre idas e vindas a gente sabe que o final será, em partes, feliz. As rampas estarão lá, posicionadas. Os acessos estabelecidos. Falta agora, a segunda luta a ser vencida: a do preconceito. Essa, certamente, será mais difícil.
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