Por meio do o conceito de Super Homem, Nietzsche, acreditava na existência de um ser superior que poderia servir como um modelo ideal para elevar a humanidade - o que resultaria não na elevação de todos, mas no desenvolvimento de indivíduos mais dotados e mais fortes. É com essa noção em mente que os jovens estudantes Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger) resolvem assassinar, já nos primeiros minutos do clássico Festim Diabólico (Rope) de Alfred Hitchcock, um terceiro, de nome David (Dick Hogan), colega da escola preparatória. Philip e, especialmente, Brandon - movidos, inegavelmente, por algum tipo de psicopatia - acreditam-se seres superiores intelectual e culturalmente e, portanto, acima dos conceitos morais estabelecidos pela sociedade. O que justificaria o crime, um enforcamento realizado em plena luz do dia.
Como se a crueldade não fosse suficiente, a intenção da dupla é a de transformar o seu ato em uma espécie de "obra-prima da criminalidade" - provando a sua capacidade de executar o assassinato com perfeição. Para isso pensam no melhor álibi: o de realizar uma festa de despedida para Philip - que está mudando de cidade - no apartamento em que a dupla de protagonistas mora e em que o delito foi cometido. Enquanto o corpo ainda quente jaz em um grande baú localizado no centro da sala, com comes, bebes e castiçais dispostos acima do móvel, a família de David - seu pai (Cedric Hardwicke) e sua tia (a ótima Constance Collier) e mais a namorada Janet (Joan Chandler) - participa do encontro, ainda que lamentando a ausência de David, "que costuma não se atrasar" (como comenta um deles). Já o desconfiado professor Rupert (James Stewart) é outro convidado, trafegando pelo ambiente como se tivesse a impressão de que haver algo errado, naquela tarde/noite.
Muito menos preocupado em se aprofundar nas questões filosóficas que poderiam estar por trás da tentativa do "crime perfeito", Hitchcock transforma os diálogos entre Brandon e Rupert em um verdadeiro jogo de xadrez - em que o segundo procura "cercar" o primeiro, conforme a desconfiança do professor toma corpo. Nesse sentido, é impossível não se deleitar diante das provocações entre ambos, que chegam ao limite da tolerância na sequência em que Brandon descreve a facilidade com que Philip torcia o pescoço das galinhas, quando este era mais novo. Aliás, as tiradas da persona criada por John Dall são um espetáculo a parte - "sempre desejei ter talento para as artes e quem diria que o homicídio também poderia ser uma arte", afirma ele com um sorriso debochado, o que o transforma instantaneamente em um dos assassinos a sangue frio mais sádicos da história do cinema.
E como se já não bastasse o roteiro intrincado e inteligente - e a ótima "perseguição" a moda gato e rato - o Mestre do Suspense ainda transforma Festim Diabólico em um dos mais inesquecíveis filmes do ponto de vista da técnica. Filmado como se fosse uma longa peça de teatro - a obra se passa toda em um mesmo cenário, com a câmera flanando entre eles -, o roteiro se ocupa de realizar pouquíssimos cortes (vistos quando a câmera de desloca para trás de um sofá, de uma parede ou mesmo do paletó de algum dos personagens). O que torna ainda mais surpreendente o esforço de todo o elenco em colocar em prática uma ideia que, até os dias de hoje, seria desafiadora. E mesmo a câmera que "treme" ou o final da tarde que parecer chegar mais rápido do que aquilo que seria a fluidez natural do tempo, tornam-se charmosas marcas da obra-prima.
Arrojada também na abordagem de uma (suposta) homossexualidade da dupla de protagonistas - que mora junta em um apartamento com apenas um quarto e não hesita em trocar olhares e silêncios de grande intensidade dramática -, Hitchcock também ousa ao tornar a arma do crime (no caso a corda) uma espécie de coadjuvante de luxo, que reaparece em vários momentos, seja na mão de Brandon durante a conversa com a empregada (Edith Evanson), ou mesmo mais tarde, como um prosaico suporte de livros. Todos estes detalhes que engrandecem a obra, que pavimentou o caminho para que Hitchcock realizasse mais tarde os seus grandes clássicos - como Janela Indiscreta (1954), Um Corpo Que Cai (1958), Intriga Internacional (1959) e Psicose (1960). Um filme, enxuto, direto e sombriamente divertido, que resume o espírito de seu autor.
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