quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Cine Baú - Amarcord

De: Federico Fellini. Com Bruno Zanin, Magali Noël, Armando Brancia e Pupella Maggio. Comédia / Drama, Itália, 1973, 122 minutos.

O rigor da Igreja e do exército de um lado, o clima festivo e meio depravado de outro. A escola e a família como balizadores morais aqui, os desejos impulsivos e sexuais ali (basicamente em qualquer lugar). O fascismo duro e o progressismo utópico. O inverno e a primavera. Tudo meio amalgamado, misturado, de forma que fica quase difícil delimitar onde começa uma coisa e termina outra. É essa Itália vasta, complexa, heterogênea - que é capaz de converter uma passeata em favor de Mussolini em uma inesperada festividade -, que Federico Fellini retrata no autobiográfico Amarcord, filme que completa 50 anos de lançamento em 2023 e que está disponível na HBO Max. Adotando um estilo narrativo que se aproxima do de outros projetos, como no caso de A Doce Vida (1960), o diretor aposta em uma história fragmentada, episódica, que alfineta a alienação dos italianos, em meio a suas rotinas mesquinhas e diante da completa incapacidade de aquisição de alguma consciência política ou social.

Mesmo que espalhada em diversos atos, quase como se fossem pequenas esquetes, a trama é centrada no jovem Titta (Bruno Zanin) e suas idas e vindas entre aulas tediosas na escola - com professores incapazes de reter a atenção dos alunos com seus métodos retrógrados -, confissões de pecados na Igreja e um ímpeto para certa vagabundagem no vilarejo, onde tenta em vão atrair de todas as formas a atenção da sedutora Gradisca (Magali Noël), uma cabeleireira local. Quando está com sua família, a vida de Titta também não é fácil: seus pais Aurelio (Armando Brancia) e Miranda (Pupella Maggio) estão sempre em pé de guerra, convertendo um simples jantar em um front de batalha. Com tudo piorando quando o exército fascista chega oficialmente à cidade e prende Aurelio, sob a desculpa de ter incorrido em ato subversivo (após os generais ouvirem uma música contrária ao Regime). O castigo? Ele é obrigado a tomar uma dose de óleo de rícino.

Ainda assim não deixa de ser curioso notar como a presença de extremistas por todos os lados na região - influenciando não apenas no Estado, mas também na Igreja e na educação - sequer parece ser suficiente para que os habitantes despertem de sua letargia, que faz com que eles conduzam as suas vidas sem nem perceber as tragédias do entorno. Sabe aquele seu tio idoso, ali da Serra Gaúcha, que já afirmou não ter nenhuma memória negativa da Ditadura Militar porque nunca viu nada de ruim acontecendo? Pois é. Em certa altura da projeção, Ciccio (Fernando De Felice), um dos melhores amigos de Titta, tem um sonho "molhado" em que se casa com sua paixão de escola Aldina (Donatella Gambini) sob uma enorme efígie de Benito Mussolini que referenda a união. "Esse entusiasmo faz de nós jovens, mas também antigos", comemora alguém em meio a passeata em favor do Duce. É uma espécie de embrião do flash mob do Partido Novo em favor do "mito".

Sem jamais deixar a peteca cair, Fellini debocha desse coletivo de pessoas que soa até mesmo infantilizado, ainda que a sexualidade latente (à moda quinta série) pareça sempre pronta a vir à tona. Se numa das primeiras sequências a cidade está em polvorosa para os folguedos que saúdam a chegada da primavera, em outro os habitantes fazem uma guerra de bolas de neve para celebrar o frio do inverno. Entre uma e outra temporada, um sem fim de hormônios borbulhantes que estão sempre no limite da excitação - seja por Gradisca, seja pela prostituta Volpina (Josiane Tanzilli) ou seja ainda pela dona da tabacaria (Maria Antonieta Beluzzi), com seus enormes seios que, ironicamente, quase sufocam Titta quando ele se insinua para a voluptuosa mulher (que aceita suas investidas). "Eu quero uma mulher!" berra o tio de Titta, Teo (Ciccio Ingrascia) em uma das mais exóticas cenas do filme: recém saído de um manicômio ele sobe em uma árvore gigantesca e resolve, num arroubo de sinceridade, afirmar para o mundo o que lhe perturba de verdade. Onírica, melancólica, de tintas anarquistas, a produção venceria o prêmio na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar daquele ano, aparecendo ainda em um sem fim de grandes obras de todas os tempos. Obrigatório é pouco.

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