quarta-feira, 6 de maio de 2020

Cine Baú - A Doce Vida (La Dolce Vita)

De: Federico Fellini. Com Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Yvonne Furneaux e Anouk Aimée. Comédia / Drama, França / Italia, 1960, 174 minutos.

Poucas vezes o hedonismo, a futilidade, o vazio existencial e até mesmo a estupidez da aristocracia foi tão bem retratada como no clássico A Doce Vida (La Dolce Vita), de Federico Fellini. Trata-se de um filme com uma lógica toda particular de funcionamento e que tem na figura do jornalista Marcello Rubini (Marcello Mastroiani), o seu fio condutor. Surgindo em cena como uma espécie de alter ego do próprio diretor - Fellini foi jornalista no começo da carreira -, Rubini trafega de festa em festa, de episódio em episódio, chafurdando em meio ao histrionismo da burguesia, sempre pronta a celebrar por qualquer motivo, mas incapaz de refletir a respeito do absurdo de suas realidades ocas. Sim, a vida é boa, fervilhante, engraçada e abundante para quem pode consumir o que quiser, do bom e do melhor - de comida a bebida, passando por atividades culturais e eventos movimentados. Para quem tem suas vidas vigiadas por colunistas sociais, ávidos por qualquer movimento que possa agitar as páginas dos periódicos. Um universo profano, iconoclasta cheio de prazeres fúteis e de pessoas comuns aos pés de famosos e de celebridades.

Mas Rubini não parece muito preocupado com isso. Tanto que, por causa de sua profissão, mantém um certo distanciamento da frustrada namorada Emma (Yvonne Furneaux) - que parece existir apenas para atender os caprichos do amado, em um relacionamento claramente fadado a fracasso. São vidas muito diferentes, universos muito diferentes. Visto do ponto de vista do "copo cheio", A Doce Vida também pode funcionar como uma celebração à vida, seus pequenos (e grandes prazeres), uma taça de vinho, uma obra de arte, os encontros aleatórios. É o que acontece, por exemplo, em uma das primeiras sequências, quando Rubini sai do bordel que leva o nome de Chá Chá - uma espelunca em que espetáculos de vaudeville se alternam como exibições eróticas - com sua amiga Maddalena (Anouk Aimée). O destino é incerto. No caminho, param junto a um prostíbulo decadente e recolhem uma prostituta. Dão algumas voltas pela cidade, retornam, tomam café. Marcello e Maddalena se beijam. O dia amanhece. Uma coisa se emenda na outra.


O cinéfilo meio desavisado - ou talvez não iniciado em Fellini -, talvez ache meio estranho esse formato em que nada e tudo acontece ao mesmo tempo, em três horas de duração de película. Assim que ocorre um corte, que o dia muda, as personagens são completamente outras. Pessoas que nunca "vimos" antes, que vão surgindo na vida de Rubini, como espectros de uma mesma existência, que vai no limite entre a vida glamourosa e a marginal. Rubini é, também, uma personagem daquele universo: uma figura da noite que trafega por locais luxuosos, enquanto mora num apartamentinho mixuruca (ele é jornalista, não nos esqueçamos). Sonha com uma vida que, muito provavelmente, só existe nas linhas que resultam do dedilhado em sua máquina de escrever. Encontros casuais, idas e vindas que pouco significam em sua vida. Mas que, ao mesmo tempo, preenchem sua existência de significado, numa espécie de paradoxo difícil de definir.

Como exemplo disso temos a clássica cena em que Anita Ekberg aparece. Quando surge - uma atriz sueca de sucesso, voluptuosa e ao mesmo tempo elegante -, é recebida com pizza já no aeroporto. Mais tarde, durante uma excêntrica festa com muita cor e música, a atriz (seu nome e Sylvia), se indisporá com se marido e fugirá do local. Naquela madrugada, ao lado de Rubini procurarão leite para fornecer a um gato de rua (!), se banharão na Fontana Di Trevi, flertarão, sem nunca concretizar nada. Marcello apanhará do marido de Sylvia já no alvorecer, quando ambos estão retornando da noitada maluca. Sylvia sumirá. No outro dia, outros eventos, outras festas, outros acontecimentos. Outras pessoas. Sempre perseguidas pelos repórteres fotográficos - ávidos por imagens chocantes, impactantes. Aliás, história boa, o termo paparazzi surgiu nesse filme - era o nome do braço direito de Rubini (personagem vivido por Walter Santesso).


Para quem já está ambientado a linguagem felliniana, o filme definitivamente é um prato cheio. Intercalando imagens oníricas, quase fantasiosas (como as que envolvem as apresentações de teatro ao mesmo cheias de energia e de sofisticação), com outras mais trágicas (não é apenas o desolamento que abate as classes mais altas, há também a morte), a película também se "vende" como uma forte crítica ao fanatismo religioso e ao conservadorismo das "famílias de bem", havendo pelo menos duas sequências em que o assunto aparece, ainda que indiretamente. Nesse sentido, A Doce Vida se apresenta quase um divisor de águas: fica para trás o cinema levemente mais social de obras como A Estrada da Vida (1954) e Noites de Cabíria (1957) para investir em obras mais fantasiosas, cheias de devaneios circenses e de personagens característicos, que parecem saídos de delirantes sonhos palpáveis - casos de Amarcord (1973) e E La Nave Va (1983). Claro, a crítica social não esmoreceu. Ela só mudou de ângulo com o arrefecimento do neorrealismo italiano. Esnobado pelo Oscar, o filme alcançou a consagração máxima com a Palma de Ouro No Festival de Cannes, sendo figurinha fácil em qualquer lista de melhores da história. Com 60 anos de idade, A Doce Vida envelheceu bem. E segue sendo cinema de primeira.

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