segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - Uma História Real (The Straight Story)

De: David Lynch. Com Richard Farnsworth, Sissy Spacek e Harry Dean Stanton. Drama, EUA / França / Reino Unido, 1999, 112 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor David Lynch sabe que as narrativas naturalistas, com os pés bem calcados na realidade, não costumam ser o seu forte - e basta pensar em obras herméticas, oníricas e complexas como Veludo Azul (1986) ou Cidade dos Sonhos (2001), para que tenhamos a certeza disso. Sim, não é todo o dia que o realizador da série Twin Peaks faz um filme mais "normalzinho". E, com o poético e comovente Uma História Real (The Straight Story), ele acerta em cheio. Aqui temos um olhar um pouco mais romantizado para o coração rural dos Estados Unidos, a partir da história do idoso Alvin Straight (Richard Farnsworth), um veterano da Segunda Guerra Mundial que resolve sair de uma cidadezinha no Estado de Iowa em direção ao Wisconsin, a bordo de um cortador de grama motorizado. O objetivo? Visitar o seu velho irmão que, recentemente, tivera um AVC.

Ocorre que Alvin, do alto dos seus 73 anos, e com uma vida não muito regrada no que diz respeito à hábitos alimentares também não está lá muito bem de saúde. Após uma queda inesperada em sua casa, a sua filha Rose (Sissy Spacek) praticamente implora pra que ele faça uma bateria de exames - o que ele aceita meio a contragosto. O resultado do check up não é animador e o histórico envolvendo alto consumo de cigarros e de bebidas cobra seu preço: com diabetes, o idoso já não consegue enxergar direito. Pra piorar, um problema no quadril faz com que ele tenha dificuldades para se deslocar - o que só é possível com duas muletas. Só que a fragilidade generalizada, que se soma ainda a certa deficiência intelectual da própria filha, não demove Alvin de cumprir sua missão: brigado com seu irmão há dez anos, talvez seja o momento de uma reconciliação. Afinal de contas, não se sabe quanto tempo de vida ambos terão. E é a medida dessa incerteza que torna tudo tão mais urgente.

E é evidente que rodar mais de 500 quilômetros a bordo de um veículo que não anda nem a vinte quilômetros por hora não será tarefa fácil. A primeira tentativa dá errada já na arrancada e Alvin sequer ultrapassa os limites da cidade com um velho equipamento. Sem tempo a perder ele compra uma máquina usada da John Deere e reinicia a sua jornada. Que consolidaria este como um dos mais inesperados road movies dos anos 90. Diferentemente do que poderia ocorrer, aqui Lynch está menos interessado nas circunstâncias do afastamento entre os irmãos - essas coisas acontecem nas famílias, afinal -, e sim nas transformações que a viagem possibilitará. No caminho, Alvin fará amizade com uma jovem grávida que está fugindo da família, com um padre que lhe fornece comida, com os moradores de um vilarejo que lhe socorrem quando ele tem problemas no freio de seu "veículo". Com cada encontro sendo a desculpa perfeita para filosóficas divagações sobre vida, morte, sonhos, dores, temores e anseios. No horizonte de Lynch a ideia de que envelhecer não é fácil. Mas que é possível tornar esse processo menos sofrido.

Como poucas vezes no cinema norte americano, Lynch transforma as vastas lavouras de milho, os maquinários agrícolas gigantescos e a rotina de famílias conservadoras do interior em um conjunto bastante amigável, bucólico - o que é reforçado pela trilha sonora comovente de Ângelo Badalamenti. Sem pressa, o diretor nos conduz por inúmeras paisagens isoladas, de um calor palpável, que são enfrentadas com determinação por Alvin que, com seu olhar doce e acolhedor, de olhos sempre úmidos, se converte em uma figura afável, cheia de carisma e de paciência - como vemos em cenas como a que ele perde o seu chapéu inesperadamente, ou quando ele se depara com um grupo de ciclistas que cruza pelo seu caminho. Há um ideal meio afetuoso no todo, que é evidenciado pelo senso de cooperação presente na vida em comunidade. Ao cabo, todos torcem para que Alvin alcance o seu objetivo, por mais complexo e desafiador que ele seja. Em linhas gerais esse é um projeto com um fiapo de história, baseado em um evento real ocorrido em 1994, e que é divertido, solene e e contemplativo em igual medida. Não parece um filme do David Lynch. Mas talvez seja justamente por isso que ele se torne tão especial.


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