segunda-feira, 5 de abril de 2021

Tesouros Cinéfilos - Meu Pai (The Father)

De: Florian Zeller. Com Anthony Hopkins, Olivia Colman, Rufus Sewell e Imogen Poots. Drama, Reino Unido, 2020, 97 minutos.

Acho que uma palavra que define bem a experiência vivida pelo espectador ao acompanhar a narrativa do belíssimo e intrigante Meu Pai (The Father) é "imersão". Afinal de contas não foram poucos os filmes a abordarem distúrbios cerebrais como esquizofrenia, Mal de Alzheimer ou demência, mas poucos o fizeram de forma tão inventiva como na obra dirigida pelo estreante Florian Zeller. Aqui, pode-se dizer que a gente vivencia JUNTO com Anthony (Anthony Hopkins) suas inseguranças, hesitações, medos e dúvidas gerais sobre o entorno (e até mesmo sobre o que é real ou não), que lhe deixam completamente desorientado. Desnorteado. Octogenário que está sofrendo com a perda da memória, o protagonista se recusa a receber ajuda de qualquer enfermeira sugerida pela filha Anne (Olivia Colman), que está prestes a se mudar para Paris para se casar, tocar sua vida, etc. É nesse pequeno grande conflito que a narrativa se amarra: quais as melhores decisões, afinal?

Ao cabo trata-se de uma obra bastante intimista e que praticamente não sai do apartamento de Anthony - o que inevitavelmente amplia a sensação de desconforto, quase de claustrofobia, conforme a câmera vaga de um cômodo a outro, estando estes quase sempre vazios. Pontuado por sutilezas, a película tem nas atuações uma de suas maiores fortalezas, tanto que muitos críticos têm saudado a interpretação de Hopkins como uma das maiores de sua longa carreira - e, sinceramente, é impressionante a capacidade do astro de O Silêncio dos Inocentes (1991) de nos comover com um gestual econômico, um olhar apreensivo, uma lágrima insegura. Vagando pelos cômodos de seu apartamento, enquanto recebe visitas da filha, do genro Paul (Rufus Sewell) e de uma candidata a enfermeira que está prestes a ser contratada (vivida por Imogen Poots), Anthony é uma figura que esmaece como uma árvore que "perde suas folhas", pra usar uma figura utilizada pelo próprio personagem em certa altura.

Ainda no campo das interpretações, Olivia Colman faz o contraponto perfeito como a filha que está ao mesmo tempo preocupada e ansiosa - e que deseja o melhor para o pai, ainda que trafegue em um universo de incertezas. Não por acaso, sequências como aquelas em que ela tenta tocar o cotidiano com alguma normalidade, preparando o café, o jantar ou dizendo para seu genitor permanecer com o pijama, para no instante seguinte se ver confrontada com a dura realidade dos efeitos provocados por sua demência, são não menos do que assombrosas também pela composição que Olivia faz (uma figura que claramente carrega uma exaustão no olhar). Indicada ao Oscar, a dupla central utiliza todo o potencial dramático da narrativa - especialmente nos closes quase "pornográficos" de seus rostos doloridos, duros. Condição que torna o filme - econômico em cenários, em trilha sonora ou em outros recursos técnicos -, maior do que efetivamente é.

Mas é claro que não é só de interpretação que vive um filme e a obra aqui funciona por nos suscitar dúvidas o tempo inteiro sobre aquilo que assistimos. Com a realidade posta a prova, somos introduzidos o tempo todo a situações que se repetem, personagens aleatórios (e desconhecidos), cenários que se modificam de forma sutil (um quadro que estava lá e não está mais) e ocorrências estranhas. Nesse contexto, há também uma persistência quase comovedora de Anthony em "encontrar o seu relógio", numa metáfora tão óbvia quanto perfeita do tempo (e da memória) que se esvai - mais ou menos como aquilo que acontece com o protagonista de Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman. Belo, comovente e desalentador, Meu Pai é um filme que desnovela a dureza de uma assombrosa condição cerebral que limita as habilidades sociais e cognitivas, enquanto um idoso percebe, com algum grau de consciência, as consequências disso. Dolorido é pouco.

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