terça-feira, 17 de março de 2020

Novidades no Now/VOD - A Camareira (La Camarista)

De: Lila Aviles. Com Gabriela Cartol, Teresa Sanchez e Agustina Quinci. Drama, México, 2019, 104 minutos.

Existe um tipo de opressão, especialmente direcionada à massa trabalhadora, que é demonstrada de forma soberba (e sutil) no ótimo A Camareira (La Camarista) - obra que foi a enviada pelo México para concorrer na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar desse ano. Esse tipo de abuso é muito mais estrutural, está presente no tecido social, o que faz com que muitas pessoas vivam uma vida de invisibilidade. Aliás, pior: na intenção de obter o mínimo para o atendimento de suas necessidades mais básicas, abdicam permanentemente de suas vidas pessoais, abrindo mão de seus sonhos, anseios e desejos para existir, em muitos casos, a existência do "outro". E, nesse sentido, não poderia haver ambiente mais adequado para o desenvolvimento da ação da película de estreia da realizadora Lila Aviles, do que um hotel de luxo de uma grande metrópole.

É esse hotel de luxo que nos permitirá nos ver confrontados com tantos contrastes - seja ele nos figurinos que, no caso das camareiras, são sempre o uniforme cinza e sem vida fornecido pela empresa, seja na própria rotina das pessoas que ali trafegam, em si. E, nesse sentido, talvez não haja um exemplo mais ostensivo dessas diferenças, como no instante em que a camareira Eve (Gabriela Cartol, em excelente intepretação) é chamada por uma turista argentina da classe mais abastada (alta, magra, de pele e cabelos bem cuidados), para ficar por dois minutos em seu quarto, no hotel, cuidando de seu bebê de dois meses, enquanto ela toma uma ducha. Eve atenderá o pedido da mulher, por mais que esteja atarefada, tendo um andar INTEIRO do hotel para limpar. Eve amparará o bebê da mulher. Eve, que há semanas, talvez meses, não vê o próprio filho de quatro anos, por que está na grande cidade, trabalhando num emprego de que ela não gosta, mas se empenhando em juntar as economias, que talvez lhes permitam um futuro melhor. Ah, detalhe: o pai da criança? Aparentemente não existe.


O encontro fortuito de Eve com a mulher argentina será uma das tantas interações que ocorrerão entre ela e os hóspedes do hotel, em pouco mais de uma hora e meia de filme. Hóspedes naturalmente mal educados, monossilábicos, que se consideram pessoas moralmente superioras (e quase nunca são) pelo simples fato de terem mais dinheiro do que a camareira. Que terão um eventual ar condescendente por meio de diálogos hipocritamente pensados para lhes conferir um ar de generosidade burguesa, de filantropia à moda rotariana (como no caso em que a mesma mulher argentina oferece a Eve um emprego em seu País, como se isto representasse uma revolução nas relações trabalhistas ou mesmo entre pobres e ricos). Nos corredores bem acabados do hotel, Eve se deparará o tempo todo com o abismo que existe entre sua existência e a daquelas pessoas, que mal lhes direcionam um bom dia, que estão sendo confortavelmente individualistas em seus pensamentos, enquanto aquela camareira lhes invade seus espaços, suas vidas, seus hábitos.

Trata-se de um filme inteligente pelo simples fato de, por meio de seu microcosmo (um hotel de luxo), estabelecer, metaforicamente, um recorte maior da sociedade. As tentativas de crescimento interno na própria empresa - sempre frustradas -, a busca pelo ensino ou pela leitura tardia que pudessem representar algum tipo de redenção, ou mesmo a persistência em conseguir um vestido vermelho que foi esquecido por um hóspede e que está no setor de achados e perdidos, nada mais são do que os estratos mais vulneráveis da sociedade lutando para sair da invisibilidade, tentando, em meio a selvageria do capital, algum reconhecimento. E talvez não seja por acaso que seja tão representativo de algum tipo de libertação pessoal, o instante em que Eve invade o tão cobiçado 42º andar para, ali, reconhecer enfim a distância que suas mãos calejadas se encontram de tudo - o que não será resolvido por um simples creme, evidentemente. É uma obra que tem uma fluência um pouco mais lenta, uma sutileza que berra e que nos lembra o tempo todo que vivemos em uma sociedade em que poucos têm muito e que muitos têm pouco. Vale conhecer.

Nota: 8,5

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