terça-feira, 18 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Até os Ossos (Bones and All)

De: Luca Guadagnino. Com Taylor Russel, Timothée Chalamet, Mark Rylance, Chloë Sevigny e Michael Stuhlbarg. Drama / Terror / Romance, EUA / Itália, 2022, 131 minutos.

Uma alegoria sobre pessoas à margem da sociedade que lutam para sobreviver? Ou "apenas" um romance de tintas gore sobre um casal que tem o canibalismo como estilo de vida? Metáfora para uma sociedade doente que tem por hábito excluir aqueles que considera diferentes (ou que não se encaixam em certo padrão)? Ou road movie sobre dois desajustados num esforço tão desesperado quanto poético - mais ou menos como o da dupla central de Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone? Um pouco de cada coisa talvez. E é por isso que a arte é tão linda. Porque enquanto assistia Até os Ossos (Bones and All) ficava o tempo todo me perguntando "o que diabos o Luca Guadagnino tá querendo dizer?" Ali pelas tantas surgia algum discurso meio perdido de Ronald Reagan na TV - a trama se passa nesses desolados anos 80 de completo esfacelamento do sonho americano - e mentalmente eu já pensava "tá aí, é um filme político".

Só que ali adiante esse ideal já parecia ser quebrado, especialmente pelo comportamento excessivamente desequilibrado de certos errantes. Ok, o sistema é bruto e ele isola as minorias, sejam eles pretos, pobres, gays. Mas então qual é o sentido de converter, por exemplo, o personagem Sully (o sempre ótimo Mark Rylance) em uma espécie de vilão involuntário? Que resolve caçar a dupla de protagonistas - no caso Maren (Taylor Russel) e Lee (o onipresente Timothée Chalamet) - até o final? Ele também não é um excluído? Isso fez com que eu me desse conta de que talvez a coisa não fosse tão complexa assim. Ou era? No começo do filme, entendemos Maren como uma jovem recém-chegada à Virgínia. Está fazendo novas amigas, frequentando as aulas. A gente estranha quando seu pai tranca a sua porta à noite. A jovem foge e vai ao encontro das meninas, que estão fazendo uma reuniãozinha. A conversa é amena: música, festas, interesses juvenis e, bom, "você fez de novo" é a reação do pai ao saber o que Maren havia feito. É preciso fugir. Novamente.

Em linhas gerais, Guadagnino não se ocupa em tentar explicar por que Maren, Lee, Sully e outros são o que se chama de "comedores". Sim, comedores de carne mesmo. Carne humana, no caso. Eles apenas existem como desajustados que vagam de uma cidade para a outra, sendo capazes de se reconhecer pelo cheiro - que é justamente a forma com que o excêntrico Sully se aproxima da protagonista. Eles até podem se alimentar de comida normal. Mas não demora para que o desejo de ser uma espécie de Drew Barrymore em Santa Clarita Diet - aliás, uma das mais divertidas e inusitadas séries da Netflix - fale mais alto. Só que pra comer um ser humano é preciso, inevitavelmente, matá-lo. E aí, como faz? Tentando manter a coisa mais ou menos dentro de um código de honra, a dupla central adota o modo Yellowjackets somente quando acreditam estar diante de alguém que possua um código de conduta minimamente questionável. Mas e se a leitura for equivocada? Assim, é preciso fugir. Praticamente o tempo todo. De Estado em Estado da Costa Leste americana.

Abandonada pelo pai, Maren tem o sonho de conhecer a mãe Janelle (Chloë Sevigny) que, mais tarde, ela descobrirá estar passando por sérios problemas. E quem ali não está? Adotando uma fotografia levemente granulada que parece combinar à perfeição com os cenários bucólicos de estados como Ohio, Indiana, Missouri e Iowa, Guadagnino converte Até os Ossos em uma experiência sobre sobrevivência em meio a um contexto difícil, que escancara (ainda) de forma quase literal o ideal que envolve uma de nossas necessidades mais básicas como ser humano: a de comer. Visceral, o filme talvez exija um pouco de força de vontade do espectador, dadas as sequências com corpos mutilados, ossos expostos, bocas e roupas sujas com sangue e vísceras. Animalesco, selvagem, de certa forma grotesco, esse é um filme que mistura gêneros e que permanece conosco, após os créditos finais subirem. E que ainda possui uma excelente trilha sonora. O que o diretor de Me Chame Pelo Seu Nome (2017) quis dizer? Não consigo dizer com certeza. Só sei que a jornada é prazerosa. Aliás, estranhamente prazerosa.

Nota: 8,0


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