segunda-feira, 6 de março de 2023

Cinema - Tár

De: Todd Field. Com Cate Blanchett, Nina Hoss, Sophie Kauer, Némie Merlant e Mark Strong. Drama, EUA, 2022, 158 minutos. 

Em uma das tantas ótimas sequências de Tár, a maestrina Lydia Tár (Cate Blanchett) discute longamente com Max (Zethphan D. Smith-Gneist), um dos seus alunos no conservatório Julliard sobre a possibilidade de reger uma obra de Johann Sebastian Bach. De forma meio envergonhada, tímida - o que é explicitado pela insistência de seu movimento de pernas (que sugere certo nervosismo) -, Max se enche de coragem para dizer à Lydia que não possui nenhum interesse em Bach. "Honestamente como uma pessoa de cor, não binária, eu diria que a vida misógina de Bach torna meio impossível para mim levar sua música a sério". Lydia na sequência debocha do assunto lembrando que, sim, Bach deixou 20 filhos para o mundo. Assim como um volume considerável de composições. O que a faz questionar em seguida o que as suas prodigiosas habilidades no leito conjugal teriam a ver com sua arte. Bach, que nasceu em 1685 e talvez seja um dos mais importantes compositores e regentes da história, é, aparentemente o mais novo cancelado. Vamos subir a hashtag #bachmisogino no Twitter!

Pode até soar como tema menor dentro de uma obra tão cheia de floreios, de magnitude e de volúpia como é o caso dessa, mas a atual cultura do cancelamento e as decorrentes campanhas de ódio que se instalam com facilidade galopante nas redes sociais com o intuito de destruir reputações, parece estar no cerne do filme de Todd Field - do ótimo (e distante) Pecados Íntimos (2006). O assunto, aqui e ali, retorna à narrativa, seja em meio a uma discussão prosaica sobre Schopenhauer, que teria jogado uma mulher da escada no passado (!) - "não está claro se essa falha pessoal seria relevante para o seu trabalho", recorda Andris (Julian Glover), espécie de mentor intelectual de Lydia -, ou seja em meio a um debate sobre Gustav Mahler que, com seu comportamento machista, talvez tivesse barrado a ascensão de sua própria esposa, Alma, à época. Exemplos de artistas com vidas pessoais no mínimo questionáveis e obras de arte irretocáveis não faltam. O que fica como legado? Pelo que eles serão lembrados no futuro? No frigir dos ovos, Lydia afirma a Max que a música feita por homens brancos e heterossexuais de antigamente também podem gerar sublimação. Elevação. Especialmente quando os novos condutores conferem à essas composições a sua personalidade.


Só que o problema para a própria Lydia Tár é que ela não está vivendo no Século 17. Ou não está tentando cavar um espaço em meio a uma sociedade tão abissalmente patriarcal como a de outrora. Nesse sentido, caberia a ela participar mais ativamente dessa discussão? Levantar essas bandeiras? Ou fazer como na conversa com Max? No decorrer de pouco mais de duas horas da obra, perceberemos não apenas a complexidade da experiência humana - com suas virtudes, falhas e múltiplas facetas. Quando começa, o filme leva mais de cinco minutos lendo a impecável biografia da maestrina, repleta de feitos notáveis e de grandes contribuições para as artes, para a cultura, para a educação, para o mundo. Com direito até mesmo a apresentações gratuitas durante a pandemia. Mais adiante, nos depararemos com seus desvios de caráter, suas fraquezas morais, que sugerirão uma personalidade egocêntrica que, talvez, esteja utilizando de sua fama para agir como uma verdadeira predadora sexual, que coopta jovens musicistas, descartando-as a seu bel prazer (ou conforme ela se sinta satisfeita de alguma forma). O que, em tempos de redes sociais fervorosas e campanhas permanentes de ódio pode significar facilmente a ruína.

Não, não estou passando pano, mas de alguma forma nunca fica claro se Lydia Tár agia como agia (não me cancelem por ter dúvida, por favor, também não sei se Bach era mesmo misógino). Há uma montagem em vídeo com o claro propósito de lhe prejudicar. Comportamentos ambíguos - especialmente como resposta a uma tragédia. Só que Field constroi esse ambiente de tensão crescente de forma sutil, inteligente, sem muita pressa. Ocupando os espaços aos poucos. Preenchendo a tela. Há, por exemplo, os barulhos discretos e crescentes que vão surgindo na casa da protagonista, que poderiam sugerir, de forma alegórica, uma espécie de rima para aquilo o burburinho de sua alma. Há túneis geometricamente infinitos, que parecem sem saída. Ambientes claustrofóbicos, fechados. Tudo acompanhado de uma elogiável tapeçaria linguística, uma grande eloquência poética, que faz com que realizemos um verdadeiro mergulho nos bastidores da arte (seus trejeitos, políticas, investidores, burocracias, jogos de interesse). E há ainda as interpretações, com destaque para Blanchett que, talvez, fature seu terceiro Oscar da carreira. Ao cabo, é uma experiência intensa, daquelas que reverbera e que sai para além dos limites do seu meio. E que talvez chegue às redes sociais. Lydia Tár foi cancelada! Vocês se lembram disso? Ou só da música dela? Pesquisem. E tirem suas conclusões. 

Nota: 9,0


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