sexta-feira, 14 de abril de 2023

Pérolas da Netflix - Olhar Invisível (La Mirada Invisible)

De: Diego Lerman. Com Julieta Zylberberg e Osmar Nuñez. Drama, Argentina / Espanha / França, 2010, 96 minutos.

Já dizia o escritor Alberto Morávia que "a ditadura é um estado em que todos temem alguém". E, de alguma maneira, é possível dizer que é esse o sentimento que espreita pelas frestas do educandário que serve como cenário para o claustrofóbico Olhar Invisível (La Mirada Invisible) - obra argentina dirigida por Diego Lerman e que está lá, em algum cantinho da Netflix. A trama se passa quase ao final da Ditadura Militar dos nossos hermanos - o ano é 1982. Preocupadíssimo com o avanço dos possíveis atos de subversão, o inspetor da escola Biasutto (Osmar Nuñez) - sujeito de modos rudes, daquele tipo que costuma cair de amores pela extrema direita - encarrega a jovem professora Marita (Julieta Zylberberg) de ser uma espécie de general improvisada, que deve vigiar os alunos com rigor irrestrito. Assim, qualquer atitude que quebre esse senso de ordem, que soe como algum tipo de insubordinação, deve ser relatado.

Imbuída de sua nova tarefa, Marita perambula pelos corredores observando se as gravatas estão bem vestidas, se os tênis estão amarrados, se a distância de um aluno para o outro na fila está adequada. Ao cabo, qualquer perturbação do funcionamento normal do quart.. opa, da escola - aliás, uma escola que parece ser de elite, comandada pelo Estado - será motivo para punições. Para bilhetes aos pais. Para alertas gerais sobre os riscos da desordem. Uma das principais preocupações da protagonista tem a ver com a predileção dos jovens por cigarros. Como forma de vigiá-los, ela chega a se postar às escondidas nos banheiros - inclusive masculinos. A tentativa é de proceder com flagrantes. Surpreender bitucas em vistorias à mictórios. Só que não demora para que o espectador perceba que o interesse da docente pode estar para além do simples patrulhamento. Há algo a mais ali no íntimo. Que instiga.


Marita é jovem, tem 23 anos. Talvez, ao que tudo indica, ainda seja virgem. Em um governo ditatorial, jamais esqueçamos, o moralismo exagerado (falso ou não) está sempre na pauta. Transar e ser feliz? Coisa de depravado. É preciso controlar tudo. Deixar todo mundo em pânico. Só que para Marita talvez seja difícil controlar aquilo que está em seu interior. No caso, os seus próprios, e reprimidos, desejos. Que ela quase extrapola em olhares insidiosos, que se confundem com o seu zelo diligente. Em sua casa, na companhia da mãe e da avó, a jovem não tem sequer privacidade para um banho. Há, como pano de fundo, um certo ar de normalidade. Que é quebrado pela paleta de cores pálida, pela falta de vida dos figurinos sempre acinzentados e mesmo pela letargia permanente das atitudes e da rotina repetitiva. "A ditadura é um estado em que todos temem alguém". E a real é que mesmo quando não parece haver o que temer, há certo risco.

[ATENÇÃO, SPOILERS NESSE PARÁGRAFO] E, nesse sentido, a mensagem dessa pequena obra de pouco mais de 90 minutos, que foi exibida no Festival de Cannes, não poderia ser mais óbvia. A frase "cria corvos e eles te comerão os olhos", de autor desconhecido, aqui também se aplica. Tudo segue em uma rotina mais ou menos razoável dentro daquilo a que se propõe Marita. Até ela mesma ser violada, literalmente, aliás, pelo sistema que supostamente estaria ali para protegê-la. Os acontecimentos impactam, mas permanecem. E Julieta Zylberberg brilha como a figura silenciosa, invariavelmente triste, amarga, com sentimentos e desejos retraídos. Uma alma pálida, sem vida, opaca. Que só encontrará algum tipo de libertação a partir de uma atitude extrema. Não dá pra vencer a ditaduras totalitárias com flores ou com gentilezas. Há que se cortar na carne. Marita descobre isso (quase) tardiamente. Mas, ainda é tempo de despertar. Aliás, nossos hermanos souberam disso mais do que ninguém. A história está escrita.


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