terça-feira, 4 de maio de 2021

Tesouros Cinéfilos - Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit)

De: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Marion Cotillard, Fabrizio Rongione e Olivier Gourmet. Drama, Bélgica / França / Itália, 2014, 95 minutos.

A capacidade dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne em pegar um fiapinho de história para transformá-la em um grande tratado social sobre temas profundos atinge um de seus ápices no dolorido Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit) - obra que deu à Marion Cotillard uma indicação ao Oscar. Na trama, a atriz se despe de qualquer vaidade para interpretar Sandra, uma funcionária de uma empresa que comercializa painéis de energia solar que está retornando ao trabalho, após um período em que esteve em licença saúde para tratamento de uma depressão. Só que o retorno não será fácil. E não apenas pela incerteza sobre qualquer tipo de "cura". Enquanto esteve ausente, seu chefe remanejou a equipe de trabalho: para que não precisasse contratar ninguém para executar as atribuições de Sandra, concedeu horas extras aos demais empregados, lhes pagando uma espécie de abono salarial. 

Agora acostumados ao benefício, os trabalhadores não querem perdê-lo. Só que para reincorporar Sandra à equipe será necessário abrir mão do bônus. É uma coisa ou outra, uma coisa meio "a escolha de Sofia" do mundo corporativo: ou a colega (agora rotulada como uma figura complicada, depressiva) retorna e todos abrem mão de mil euros mensais a mais nos vencimentos ou o abono fica e a mulher é despedida. Sandra também tem contas pra pagar, filhos, família. Os colegas também. Mas o empregador não quer saber disso. Pra piorar faz um plebiscito em que os próprios funcionários decidirão o futuro de todos. Derrotada em uma espécie de "primeiro turno", Sandra pede uma revisão na votação - o que ocorrerá na próxima segunda-feira. E durante um final de semana inteiro empreenderá uma verdadeira via-crúcis em que tentará convencer os demais colegas a mantê-la em seu trabalho. De casa em casa. Como se mendigasse pelo seu emprego. 

Olhando para a humilhação sofrida por Sandra - desesperada para manter o seu trabalho após um doloroso processo de recuperação de sua saúde -, os irmãos Dardenne tecem a teia em que criticam nas entrelinhas, de forma sutil, o tipo de assédio que o mercado de trabalho eventualmente direciona ao trabalhador. O que exaure sua saúde. A decisão desumana do empregador jamais é questionada diretamente, mas não seria o caso de ajustar as "melancias" nesse trator para que nem Sandra perdesse o emprego e nem os colegas abrissem mão, nem que fosse em partes, do bônus? Nesse sentido a selvageria do capitalismo - sempre vizinho do desemprego, das perdas de direitos, das necessidades de consumo, dos caprichos da iniciativa privada -, são evocados a partir da fisionomia sequencialmente devastada da personagem de Cotillard, que luta uma em uma causa inglória. Vamos combinar que chega a ser bizarro o peso de ela ter de correr atrás de uma solução para o seu caso.

Em sua peregrinação encontra de tudo: colegas empáticos por sua situação, arrependidos por terem votado contra ela, em dúvida, convictos de que não podem perder o abono. Cada um com suas vidas, seus corres, suas rotinas. Com valores empenhados em obras, benfeitorias, na criação dos filhos. Sandra conta com a compreensão do marido (mas não com sua admiração). A câmera está sempre colada neles, se apresenta como se fosse um participante incidental, como se assistíssemos um documentário sobre o sofrimento dos trabalhadores em sua luta diária. A fotografia granulada, amarelada, a quase ausência total de trilha sonora, contribuem para o caráter absolutamente naturalista do projeto - expediente que já havia sido aplicado em outras obras dos irmãos, casos dos ótimos O Filho (2002) e O Jovem Ahmed (2019). Assistir aos filmes dos Dardenne é sempre uma experiência imersiva, envolvente. A gente fica impactado, sem quase nem perceber com quais tipos de desdobramentos. É cinema que faz pensar mas sem soar excessivamente pesado. Vale cada frame.

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