De: Walter Salles. Com Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Maeve Jinkins e Fernanda Montenegro. Drama, Brasil / França, 2024, 137 minutos.
Vamos combinar que, por si só, Ainda Estou Aqui já seria mais um filmaço a nos lembrar os horrores da Ditadura Militar e a importância de conhecer a história para, nesse caso, não repeti-la. Mas o timing é realmente impressionante. Em sua segunda semana em cartaz e batendo recordes de bilheteria, a obra de Walter Salles (de Central do Brasil, 1998), estrelada por Fernanda Torres ocorre em uma linha paralela em que o golpismo fica ainda mais escancarado. Na mesma semana em que um plano para assassinar Lula, Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes é revelado pela Polícia Federal - isso logo após um extremista de direita se autoexplodir em frente ao STF tamanho o delírio e a alienação desse campo -, a população brasileira tem a oportunidade de, com uma obra de arte, se recordar dos horrores de um regime que não hesitava em torturar, violentar e matar supostos adversários políticos. A quem atribuíam a pecha de subversivos.
Nesse caso não dá nem pra dizer que é a vida imitando a arte porque na realidade é a vida imitando a vida mesmo. Quando a gente vê que o próprio Bolsonaro autorizou tentativa de golpe até o final de 2022, com o documento que descrevia a operação sendo redigido e impresso no próprio Palácio do Planalto, percebemos que estivemos por um fio de ver a nossa Pátria novamente mergulhada nos horrores de um regime tirânico. Foi por um detalhe que essa coisa cinzenta, funesta e sombria de tanques do exército, militares perambulando pelas ruas com armas em punho e um medo onipresente não se tornaram o novo normal. Nesse sentido, não é difícil sentir um calafrio ao acompanhar a história de Eunice Paiva (Torres), mãe de cinco filhos - entre eles o escritor Marcelo Rubens Paiva, que escreve a obra em que a trama é baseada - e que precisa tentar tocar a vida após o seu carismático e amoroso marido, o ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), simplesmente desaparecer, após ser levado de sua casa por integrantes do regime.
Nesse sentido, Ainda Estou Aqui se assemelha a um filme de terror. Mas não um filme de terror sobrenatural ou de fantasmas que aparecem pra atormentar os moradores. Os fantasmas até existem, mas esses usam farda, bota, falam grosso e não aceitam uma democracia em que exista o dissonante. O diferente. "Vamos fuzilar a petralhada do Acre", afirmou o ex-presidente certa feita. Em outra, bradou que o "erro da ditadura foi torturar e não matar". No caso de Rubens Paiva, ele certamente foi torturado. E morto. Pelas mãos do Estado. No filme de Salles o público sente certo alívio em não precisar se deparar com cenas de violência excessivamente gráfica que poderiam emergir das agressões. Não é que elas não ocorram e não deixa de ser torturante ouvir os gritos e o choro de quem, por trás dos corredores, clama por algum tipo de clemência - e certamente são extremamente doloridos os instantes em que a própria Eunice é levada pelos militares, sem nem saber o que eles farão com ela. E muito menos ter conhecimento do paradeiro do seu marido.
Após ser torturada e solta, Eunice volta para os seus filhos. E precisa tentar recolher os cacos de uma experiência traumática, que parece longe de ter um fim. E talvez um dos maiores impactos gerados pela obra de Paiva (e de Salles) seja justamente o de dedicar a sua atenção a quem fica. Mães, esposas, filhos daqueles que desapareceram. Uma violência moral e psicológica sem medida - contra intelectuais, professores, estudantes, artistas. Pessoas que, por escreverem cartas, ou trabalharem com cultura eram incluídos entre os rebeldes, os revolucionários, os insurgentes. Não por acaso, sequências como aquela em que os jovens - fumando, rindo, se divertindo - são parados em uma blitz, geram tanto medo. Nunca se sabe do que uma polícia violenta é capaz de fazer. Seu código de conduta desviante torna tudo imprevisível. O que contribui para um clima de tensão permanente mesmo diante dos belos cenários do Rio de Janeiro, com suas praias bonitas que parecem ainda mais magnéticas por conta das cores em tons pasteis, pela trilha sonora cheia de grandes canções setentistas e pelo figurino acertadíssimo.
Aliás, não bastasse ser uma grande história - ainda que de classe média e de uma família que, dado o seu privilégio, tem condições de contá-la (diferentemente de muitos, que certamente foram apagados em todos os sentidos) -, cheia de grandes interpretações (exigimos Fernanda Torres no Oscar já!), a produção como um todo é um primor técnico. As idas e vindas no tempo milimetricamente calculadas, o desenho de produção perfeito - com os carros, os objetos cênicos, a decoração tudo de acordo - e um sentimento de nostalgia torto por uma vida que poderia ter sido e não foi (fortalecido pela fotografia granulada e levemente dessaturada) formam um conjunto bonito onde, muito provavelmente não deveria haver beleza. Tanto é que, em meio a tantos horrores, há uma pontinha de otimismo ao cabo - especialmente nessa olhadela para o futuro, que vêm com uma foto sorridente e com a obtenção de um documento importante. Talvez ao tentar envenenar Lula e enforcar Alexandre de Moraes os truculentos golpistas tenham dado um baita tirambaço no pé. E talvez não haja chance maior para que jamais esqueçamos que anistia é o CACETE.
Nota: 9,5
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