quarta-feira, 27 de março de 2024

Cinema - O Homem dos Sonhos (Dream Scenario)

De: Kristoffer Borgli. Com Nicolas Cage, Julianne Nicholson, Dylan Gelula, Michael Cera e Dylan Baker. Comédia / Drama, EUA, 2023, 101 minutos.

Vamos combinar: desde que Nicolas Cage abraçou oficialmente o meme talvez tenhamos, com O Homem dos Sonhos (Dream Scenario), o seu melhor filme. Por que se em Pig: A Vingança (2021) ou O Peso do Talento (2022) era mais a galhofa pela galhofa, ou a mera desculpa pra colocar o astro em algum projeto de gosto duvidoso (ou apenas engraçado de maneira estranha), aqui temos também uma história para contar. Ok, é evidente que não estamos diante de um tratado sobre cultura do cancelamento, fama vazia, instantaneidade do pop de nicho, linchamento virtual e outros temas. Ainda assim não deixa de ser interessante notar como esses assuntos aparecem, aqui e ali, nessa narrativa excêntrica protagonizada por Cage e dirigida pelo ótimo Kristoffer Borgli - do excelente Doente de Mim Mesma (2022). Na trama, ele não poderia ser o sujeito mais comum: um professor universitário de biologia (seu nome é Paul) que sonha em escrever um livro sobre suas importantes descobertas a respeito da vida das formigas - ou outro tema que ninguém dá a mínima.

Só que se já não bastasse uma rotina um tanto ordinária, ele ainda é uma figura de carisma meio negativo. Por mais bondoso e dócil que seja, ele é aquele homem careca - naquele estilo George Constanza, de Seinfeld -, que usa um óculos meio antiquado e que se veste com roupas sem nenhum apelo à moda (geralmente escuras, opacas e com números maiores). Aliás, ele é uma figura tão simplória, tão discreta, que quando todas as pessoas à sua volta começam a simplesmente sonhar com ele, do nada, ele mantém a apatia excruciante inclusive dentro dos sonhos. Quando passa a ser uma espécie de pequena celebridade entre seus alunos, eles relatam os seus sonhos, que são invadidos por um Paul meio distante, no canto do quadro, alheio à narrativa. Em um dos devaneios, um dos estudantes está em fuga de um assassino sanguinário. Em outro, um prédio está em ruínas. Num terceiro, uma casa é invadida por jacarés. Em todos eles o protagonista apenas circula, como se estivesse em um plano de fundo, sem uma participação mais, digamos, direta. Ainda que esteja lá.


 

Aliás, essa falta de iniciativa é percebida também quando ele tem uma reunião (essa na vida real) com uma antiga colega que anuncia que escreverá um livro exatamente sobre um tema que ele mesmo cogitou escrever - e ele simplesmente será incapaz de confrontá-la. Em outro momento, quando uma agência de publicidade - uma start up cheia de jovens estilo Faria Lima loucos para ganhar uma graninha a custa da imagem alheia -, mostra interesse em contratar Paul (que já viralizou nas redes pelos inexplicáveis sonhos coletivos com ele, uma espécie de "efeito Mandela onírico") para uma propaganda de Sprite ou para algum tipo de parceria com o Obama, ele se recusa. Só há um interesse em sua vida, e que ele tentará capitalizar a todo custo: lançar seu livro completamente nichado, que funcionará mais como exercício egóico do que efetivamente a entrega de algum produto que alguém aguarda ansiosamente chegar ao mercado. Nesse conjunto de situações ele ainda falha miseravelmente ao tentar uma investida na jovem Molly (Dylan Gelula), uma das assistentes da agência - em uma abordagem que só gera constrangimento. Detalhe: ele é casado. E tímido. E muito correto.

E a meu ver esse roteiro poderia dar muito errado se a obra não tivesse graça. E ela é muito divertida, a ponto de em vários momentos me arrancar gargalhadas - seja no instante em que os alunos narram os sonhos (que são filmados de forma criativa, vibrante), seja nas aparições em programas de TV, ocasião em que as mais diversas teorias começam a surgir. [ATENÇÃO PARA SPOILERS] E quando Paul dá uma guinada em certa altura, que o transforma em uma espécie de Freddy Krueger improvisado, que barbariza todo mundo nos sonhos, temos aquela pulguinha que nos fará pensar sobre nosso comportamento diante de famosos nem tão famosos - e sobre como sempre estaremos prontos a julgar e a apontar dedos. E talvez não seja por acaso o surgimento de um sujeito armado, de roupa camuflada - um cidadão de bem -, no terço final, disposto a fazer justiça com as próprias mãos. o que evidenciará também como, em certos casos, as pessoas estarão a isso aqui de distância de enveredar para comportamentos extremistas. Tudo bem que nas aparências é só uma comédia sobre as pessoas sonhando obsessivamente com Nicolas Cage. Ou com um estereótipo dele. Mas ele mesmo já foi vítima dessa cultura do ódio, quando sua carreira entrou em decadência, o convertendo quase num pária em Hollywood. Que ele faça disso a matéria-prima para um projeto tão singular - e hilário - é só a cereja do bolo.

Nota: 8,5


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