De: Wim Wenders. Com Koji Yakusho, Tokio Emoto e Arisa Nakano. Drama, Alemanha / Japão, 2023, 124 minutos.
"Pássaros voando alto, você sabe como eu me sinto / Sol no céu, você sabe como eu me sinto / Brisa passando, você sabe como eu me sinto / É um novo amanhecer / É um novo dia / É uma nova vida para mim / E estou me sentindo bem". Um filme sobre rotina. Mas também sobre a alegria de simplesmente estar vivo. Assim pode ser resumida, em alguma medida, a experiência com o tocante Dias Perfeitos (Perfect Days) - filme do versátil Wim Wenders, que é o indicado ao Oscar pelo Japão. Na trama, acompanhamos o dia a dia do carismático Hirayama (Koji Yakusho), um senhorzinho de sessenta e tantos anos que se ocupa limpando banheiros públicos em Tóquio. Convivendo com a invisibilidade meio típica de seu serviço o idoso experimenta, aqui e ali, contatos esporádicos com outras pessoas, com as quais compartilha pequenos instantes que movimentam o seu cotidiano. Conferindo algum verniz para um estado de coisas que poderia apenas parecer banal.
O caso é que, por mais solitário que Hirayama seja, ele parece sempre disposto a reverenciar a chegada de um novo dia. Que normalmente se inicia com o barulho de uma vassoura repetitiva que vem da rua - indicando uma aurora sempre pontual. Escovar os dentes, molhar as plantas, preparar o café e a roupa que será utilizada. Tudo aquilo que pareceria apenas mecânico ganha outro sentido no olhar dócil do homem. Abrir a porta e respirar o ar da rua (ainda que este nem seja assim tão puro). Pegar um refrigerante gelado na máquina. Olhar para uma torre de radiodifusão altíssima que celebra a arquitetura oriental. Espiar o sol que busca algum espaço em meio à natureza frondosa - aliás, há até um nome que define essa entrada de luz filtrada pelas folhas das árvores, no caso o komorebi. Ouvir música - aliás, música boa - no caminho para o trabalho, em antigas fitas cassete. Um mendigo que dança. Ajudar uma criança. Explicar o funcionamento do banheiro a uma mulher estrangeira. Um carinho meio inesperado de alguém ainda mais inesperado. Uma volta de bicicleta em um dia chuvoso. A poesia pode estar nas coisas simples da vida? Talvez sim.
Em certa sequência, Hirayama toma um banho quente em uma espécie de banheiro público. A fumaça que emana do chuveiro enquanto ele se ensaboa parece tornar tudo ainda mais estranhamento agradável. Um aceno com a cabeça para um companheiro de sauna. E, mais adiante, um dia que se encerrará com uma cerveja em um mercado público, enquanto um jogo de beisebol passa na TV. Ao cabo, esse parece ser um projeto que está aqui para nos lembrar de como é linda a vida. E de como às vezes a gente se esquece disso na mecanicidade dos tempos. Como alguém adepto das artes, Hirayama parece sempre mais disposto a ir ao encontro dessa beleza mundana. Desse acaso que nos surpreende e nos arrebata. Lê Faulkner antes de adormecer. Coleciona filmes em VHS - aliás, parece alguém meio analógico. Ouve artistas como The Kinks, Van Morrison, Lou Reed, Patti Smith, The Animals e Nina Simone - que aliás, abre essa resenha com a onipresente e cheia de significados Feeling Good. Assim como na bela animação Soul (2020), da Pixar, aqui a beleza está na banalidade, no cotidiano, talvez até nessa segurança evocada pela repetição. Fazer um filme sobre nada em que tudo acontece? Mérito para poucos.
Hirayama tem um colega de trabalho - o jovem assistente Takashi (Tokio Emoto), que está empenhado em conquistar Aya (Aoi Yamada), mesmo sendo um pé rapado. E uma sobrinha distante e amorosa, que aparecerá de forma inesperada - seu nome é Niko (Arisa Nakano). São pessoas que, assim como a dona do restaurante, o garçom do bar ou um homem aleatório que dividirá com ele um cigarro, uma bebida e uma conversa descompromissada perfumarão seu dia, tornando-o pleno, completo. Hirayama talvez seja um sonhador, um homem utópico em um mundo tão apressado, tão urgente, tão tecnológico, tão inconstante. Em que tudo é agora, pra ontem, instantâneo. Sua câmera fotográfica parece ultrapassada. Até os seus sonhos fragmentados, abstratos, quase surrealistas, são em preto e branco. Acompanhando esse protagonista tão distinto foi impossível não lembrar, por exemplo, do casal de velhinhos de Era Uma Vez em Tóquio (1953), clássico de Yousujiro Ozu - aliás, a impressão que dá é a de que Wenders até presta tributo a Ozu com os enquadramentos que adota, muitos deles junto ao chão. Por outro lado, também pensei nas pessoas comuns retratadas no livro A Vida que Ninguém Vê, de Eliane Brum, que olha para a vida anônima em busca do extraordinário. Enfim, é muita coisa pra se pensar em uma obra singela, comovente e contemplativa, que permanece conosco por muito tempo, assim que sobem os créditos.
Nota: 9,5
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