quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Cinema - Segredos de Um Escândalo (May December)

De: Todd Haynes. Com Natalie Portman, Julianne Moore, Charles Melton e Cory Michael Smith. Drama / Romance, EUA, 2023, 118 minutos.

Segredos de Um Escândalo (May December) é aquele tipo de filme que gera desconforto justamente por vermos a quebra das nossas convicções - aliás, em linhas gerais costuma ser muito cômodo ver as nossas crenças confirmadas em um filme. Validadas. Quando aquilo que acompanhamos diz respeito a exatamente o que pensamos. Vejamos, a obra do sempre competente diretor Todd Haynes (de Carol, 2015) é um exercício levemente metalinguístico, em que acompanhamos a atriz de baixo orçamento Elizabeth Berry (Natalie Portman) se aproximar de Gracie Atherton-Yoo (Julianne Moore) para uma pesquisa de campo para seu próximo papel. Gracie possui um passado controverso, pra dizer o mínimo, que envolve um crime sexual: em 1992, quando tinha 36 anos, foi flagrada fazendo sexo com um menino de apenas 13 anos, que era colega de escola de seu filho. Todos muito provavelmente concordarão se tratar de um delito bárbaro, certo? Sim, certo. Ainda que nem tudo pareça tão simples.

E, vá lá, talvez seja justamente ao adicionar complexidade ao que assistimos, que Haynes consegue fazer com que reflitamos um tantinho a mais sobre tais eventos. O caso é que desde os anos 90 já se vão mais de vinte anos e não apenas o menino violentado - seu nome é Joe Yoo (Charles Melton) - cresceu, como segue casado com Gracie. Ela já na faixa dos 60 anos. Ele ainda um rapaz de 35. A relação iniciada de forma condenável se converteria mais tarde em matrimônio (e, em juventude suprimida). Ainda que a criminosa tenha tido de passar alguns anos na cadeia - local em que, por sinal, deu à luz Honor (Piper Curda), o filho mais velho, que está na faculdade. E que é fruto justamente do abuso. Além dele, Gracie e Joe possuem mais dois filhos, um casal de gêmeos que está prestes a concluir o Ensino Médio. E, quando Elizabeth inicia as suas seguidas visitas à bela casa de campo da família, no Estado da Geórgia, toma também contato com a história de todos ali envolvidos. Fazendo com que nós também conheçamos melhor a própria Elizabeth. Que se torna a real protagonista.

 

Porque um filme sobre pedofilia e abuso sexual também pode andar numa linha muito tênue entre a condenação antecipada e a indignação justa. E, aqui, o balizador de caráter talvez devesse ser a personagem de Portman. Ao menos em teoria. E é justamente ao subverter essa lógica, que a obra se fortalece. Afinal, seria simplesmente óbvio demais uma Elizabeth que avança sobre o casal revelando novos segredos, eventos absurdos ou traumas do passado. Que revirasse gavetas e armários para descobrir que há ainda mais nos porões apodrecidos da América conservadora (com seus jardins vistosos e bandeiras dos Estados Unidos como enfeites). Mas o que está posto está posto - tanto que a produção é inspirada no famoso caso real de Mary Kay Letourneau (um episódio que, na época, recebeu atenção nacional, sendo inclusive romantizado em certas esferas midiáticas). E Elizabeth tem as suas vontades, seus desejos reprimidos - inclusive de fama e de ascensão na carreira -, que evidenciarão as suas próprias frustrações. Ela não está ali para julgar. E quem buscar uma espécie de "advogada" em construção no papel soberbo de Portman, certamente se decepcionará.

Como exemplo, vale citar o instante em que Gracie instrui Elizabeth sobre o estilo de maquiagem e de batom que utiliza - uma sequência de rima erótica que parece revelar um embate interno que vai no limite entre a empolgação e a repulsa. Em seu íntimo, talvez Elizabeth desejasse ser como Gracie? Gostaria ela de interpretar esse papel para além do campo da ficção? Vai saber. Ao se aproximar de Joe, ela simula certa ingenuidade de quem está ali apenas a trabalho - ainda que instantes antes o espectador tenha achado no mínimo curioso o sorriso com ares de flerte enviado a meninos adolescentes no corredor de uma escola, ou mesmo a naturalidade com que ela fala de "cenas de sexo" no mesmo educandário, em uma palestra com jovens. Essa ambivalência das intenções da personagem - uma figura multifacetada, nunca unilateral -, é o que movimenta as dinâmicas de poder entre todos. Sim, a gente sabe que de nada vai adiantar Gracie fazer de conta que é a dona de casa perfeita (com seus bolos de mirtilo e sua existência ordinária). Ou Joe mencionar que é feliz ao lado dela (ainda que seus ombros caídos, seu hobby excêntrico e seu olhar perdido digam o contrário). Isso fica claro - ainda que sob um manto de suposta perfeição. Mas é Portman quem faz a mágica, quem confunde e nos arremessa para todos os lados. Convertendo esta em uma experiência tão desconfortável quanto fascinante.

Nota: 9,0


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