De: Ryusuke Hamaguchi. Com Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ayaka Shibutani e Ryuji Kosaka. Drama, Japão, 2024, 106 minutos.
"Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes". (Paulo Freire)
Em uma das cenas centrais de O Mal Não Existe (Aku Wa Sonzai Shina) - mais recente trabalho do sempre ótimo Ryusuke Hamaguchi -, os moradores de uma pequena aldeia montanhosa dos arredores de Tóquio, participam de uma assembleia com dois executivos de uma grande empresa, que prometem fazer um investimento turístico no local. Vestindo trajes sociais e utilizando um tom empolado - típico de quem passa seus dias em escritórios alvos e bem arejados -, os profissionais explicam aos nativos os detalhes do projeto, que envolve a construção de uma espécie de camping de luxo (chamado glamping) na região. As desculpas para a execução da obra costumam ser as mesmas de sempre: geração de empregos e de renda, melhorias na infraestrutura ou qualquer outro aspecto relacionado ao capitalismo tardio e a sua sanha por lucros a qualquer custo.
Quando a apresentação de power point é encerrada - com direito a adição de um vídeo institucional higienizado, provavelmente elaborado por alguma agência de publicidade desconectada da realidade -, os habitantes do povoado promovem uma chuva de perguntas. Sobre questões relevantes, como, local onde será instalada a fossa - uma vez que há um lençol freático que alimenta a comunidade com água limpa -, de como se evitarão as queimadas na estação dos ventos e de quais serão os sistemas de contenção no solo para evitar o assoreamento, que certamente resultará do revolvimento da terra e da vegetação do topo do morro para a implantação de uma estrutura totalmente invasiva. Acuados, os investidores prometem retornar à Tóquio para, na próxima reunião, ocasião em que o contrato deverá ser devidamente fechado, apresentar as soluções. Se é que haverá solução, já que, sabemos bem, nesse caso quem costuma mandar é o capital. E o lobby financeiro.
Em tempos em que as discussões a respeito da importância de se preservar o meio ambiente e de agir de forma mais sustentável estão mais em alta do que nunca - ainda que o bloco negacionista de extrema direita insista na teoria conspiratória de que o aquecimento global é uma farsa ou uma invenção do comunismo -, a obra de Hamaguchi coloca o dedo na ferida ao fazer com que olhemos para o presente como um espelho para o futuro. Na trama acompanhamos o viúvo Takumi (Hitoshi Omika), que vive com sua filha Hana (Ryo Nishikawa) nesse ambiente idílico, pacífico e tranquilo - em que tudo o que se escuta é o barulho dos pássaros, o vento na copa das árvores e o som das corredeiras. Na rotina de Takumi, o trabalho como cortador de lenha se alterna com o da busca de água nos córregos, o trato dos animais e outras rotinas típicas do campo. "Sou uma espécie de faz tudo aqui", resume para a dupla de especuladores.
O caso é que não apenas Takumi, mas grande parte dos moradores dali não deseja a chegada do empreendimento, que visa se beneficiar de subsídios no pós-pandemia. Não há por quê. Eles já vivem da terra, com qualidade de vida, utilizando os recursos naturais na medida certa para a produção de alimentos. Há um restaurante pequeno e aconchegante no local, que é famoso pelos cozidos elaborados com a água cristalina - e que possui uma clientela fixa. Ninguém ali precisa sangrar o meio ambiente para que meia dúzia de turistas urbanos ocupem e desequilibrem o lugar. Há uma série de riscos que podem comprometer o bem estar de todos ali - e que se refletirá mais adiante, sem um controle desse movimento. Hamaguchi, que dirigiu recentemente o premiado Drive My Car (2021), constroi a obra como uma experiência onírica, poética e contemplativa em que tudo flui sem pressa, com calma, em meio a planos longos, abertos e uso da trilha sonora (de Eiko Ishibashi) como amplificador de sensações. Uma sequência de Takumi rachando lenha pode levar minutos. Aquele é o cotidiano dele, em simbiose com o ambiente. Só que lá pelas tantas um tiro é escutado. "Eles caçam veados nas redondezas", explica o protagonista. O mal parece existir apenas ao redor. Mas, sem uma ação mais drástica, ele pode chegar perto.
Nota: 9,0
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