terça-feira, 23 de abril de 2024

Cinema - 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas)

De: Estibaliz Urresola Solaguren. Com Sofia Otero, Patricia López Arnaiz, Itziar Laskano e Ane Gabarain. Drama, Espanha, 2023, 125 minutos.

"Desde quando você soube que era um menino? Você acha que pode ter havido algo errado quando eu estava na barriga da minha mãe?". 

Se tem uma coisa que me fascina em certos dramas familiares é a capacidade de adicionar complexidade às suas personagens - nunca reduzindo-as a meros estereótipos ou a figuras apenas unidimensionais. Pais que são afetuosos, mas severos, avós que são conservadores, mas que acenam a certo progressismo amoroso em certas pautas, filhos que podem ser rebeldes, mas que buscam apoio entre os seus quando se sentem incompreendidos - nada, afinal, pode ser mais vida real do que isso. Ninguém é perfeito o tempo todo. Somos seres humanos que falhamos, que tentamos acertar e que podemos ter escolhas moralmente questionáveis. E uma obra como 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas), a estreia da diretora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, entrega esse tipo de experiência a contento o que, diga-se de passagem, adiciona uma boa dose de naturalismo à produção. Como se quase acreditássemos naquelas pessoas que vemos em cena, como seres humanos "de verdade".

Aliás, vamos combinar que essa sensação é reforçada também pela interpretação comovente da jovem atriz mirim Sofia Otero - que, não por acaso, venceria o Urso de Prata no Festival de Berlim do ano passado. A obra, ao cabo, é toda centrada nela - e em seu olhar curioso, destemido, cauteloso e insatisfeito. Em linhas gerais a gente tende a invisibilizar as crianças queer, como se elas não existissem - e num cenário de aumento do reacionarismo e do pânico moral, um filme que aborda o tema, ainda que com a maior delicadeza possível, pode ser inevitavelmente mal recebido (especialmente pelo cidadão de bem da família tradicional). Ainda assim há que se admirar a ousadia da diretora, que quebra esse paradigma ao nos apresentar as tensões e os dilemas da pequena Luzia (Otero), uma menina transgênero de oito anos, que trava uma verdadeira batalha interior na busca por alcançar uma nova identidade - nascida Aitor, ela ainda é tratada como menino por parentes, amigos e outros.


 

"Quando eu crescer vou ser que nem o meu pai? Eu não quero ser que nem ele." Esse é o tipo de frase que Luzia, que na intersecção entre gêneros assume o apelido de Coco, diz para a sua mãe, a exasperada Ane (Patricia López Arnaiz), que funciona como uma espécie de segundo vértice narrativo. No começo do filme ela cruza a fronteira da França - onde mora com seus três filhos, entre eles Aitor/Luzia -, em direção ao País Basco, na intenção de participar de uma cerimônia de batismo, do recém nascido filho de sua irmã. Ane é escultora e obteve uma vaga de emprego em que deverá demonstrar um pouco de suas habilidades - na casa da mãe, Lita (Itziar Laskano), ela aproveitará as ferramentas disponíveis na oficina de seu falecido pai, que também era artista plástico, para tentar algum tipo de inspiração em meio a objetos de metal, mesas improvisadas e muita cera de abelha que, fornecida pela sua tia, a apicultora Lourdes (Ane Gabarain), servirá de matéria-prima para a produção de moldes feitos a partir de peças de gesso.

É nesse ambiente em que transitam muitas pessoas, que Luzia tentará se ambientar, em meio a vizinhas futriqueiras que já a entendem como uma menina - num divertido e comovente paradoxo -, a familiares preconceituosos, que acham que a jovem deve cortar o cabelo para parecer mais com um "menininho", e também a amizades improvisadas, como é o caso justamente da tia avó, Lourdes, que parece ser a mais compreensiva, a mais aberta a ouvir as dúvidas de Luzia (que, como criança, parece ainda incapaz de verbalizar o que sente, de fato). Durante a obra são muitas as alegorias, seja no objeto religioso que, em dado instante desaparece, seja na cauda de uma sereia que funcionará como uma metáfora feminina, até chegar na experiência que envolve as próprias abelhas, seu senso de comunidade e seu ideal de coletividade acima de tudo, sem julgamentos ("existem 20 mil tipos dela, todas belas"). É um filme comovente, de idas e vindas, de câmera próxima aos rostos dos atores e de personagens que se aproximam e se afastam, que brigam, mas se abraçam e que dialogam sobre temas desconfortáveis, daqueles que nem todos talvez estejam preparados pra confrontar - mas que precisarão. O resultado é de uma beleza desconcertante, capaz de lidar com as fronteiras de gênero sem tornar o tema pesado.

Nota: 9,0


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