quinta-feira, 7 de março de 2024

Cinema - Pobres Criaturas (Poor Things)

De: Yorgos Lanthimos. Com Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo e Ramy Youssef. Drama / Ficção Científica / Comédia, EUA / Reino Unido, 2023, 141 minutos.

"Agora você só sabe ler, Bella? Assim parece que você está perdendo algo de sua ingenuidade, da sua forma de falar!" Vamos combinar que a cena em que Duncan Wedderburn (Mark Rufallo) se desespera ao perceber que sua amada Bella Baxter (Emma Stone) não é mais aquela figura infantilizada e inocente da qual ele tinha total domínio, talvez seja uma das melhores de Pobres Criaturas (Poor Things). E, em alguma medida, é nesse instante que, como espectadores, percebemos também o quão importante é o conhecimento como um caminho para a autonomia, para as tomadas de decisão, para as escolhas pessoais, para sair das amarras. Os homens reacionários que ainda habitam esse mundo nos dias de hoje normalmente possuem extrema dificuldade em lidar com mulheres de personalidade, empoderadas ou que não estão ali apenas para servi-los. Sim, os tempos estão mudando e talvez não seja exagero examinar a obra de Yorgos Lanthimos como uma alegoria feminista sobre a importância da sororidade, da igualdade entre gêneros e da luta por direitos.

Estou vendo demais nesse filme que parece um encontro de Jean Pierre Jeunet em Delicatessen (1991), com o body horror de David Cronenberg? Talvez. Mas cinema é isso mesmo e um projeto com tantos elementos, tão cheio de complexidades e de metáforas permite, ao cabo, uma série de leituras. E o caso é que estou completamente fascinado com esse projeto - o que só reafirma Lanthimos, diretor de Dente Canino (2009), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e de A Favorita (2018), como um dos melhores de nossa geração. Que uma obra tão excêntrica tenha chegado de forma tão forte ao Oscar, com boas condições de vitória em algumas categorias? Um ponto muito positivo. Cinema é entretenimento, mas também é sair da zona de conforto. E uma experiência ousada e provocativa como essa - que tem em sua premissa o componente animalesco do sexo como parte inerente à natureza humana (pra desespero dos tiozões conservadores) -, torna tudo ainda melhor.


 

A trama se passa em uma espécie de universo paralelo que parece uma mescla da Londres do século 18, com um futuro em que a tecnologia incerta - especialmente do ponto de vista da anatomia e das incisões cirúrgicas no corpo humano -, avançou bastante. É nesse espaço que o cirurgião Godwin Baxter (Willem Dafoe, como um Frankenstein às avessas) contrata o jovem estudante de medicina Max McCandles (Ramy Youssef) para ser seu assistente. O objetivo é o de que ele faça anotações a respeito da evolução de Bella, uma jovem com corpo adulto mas mentalidade infantil, que teve seu cérebro substituído pelo de um bebê, após um episódio traumático. Só que conforme Bella evolui, Max vai se apaixonando por ela. Se encantando. Ela, afinal, é uma figura cheia de vida e, pra usar uma metáfora usual, uma espécie de esponja que absorve tudo a sua volta. Tudo, mas tudo mesmo. Inclusive o sexo em todas as suas possibilidades. Em tudo aquilo que ele tem de prazeroso. Um cenário que atrai Duncan que a rapta, levando-a para, supostamente, conhecer o mundo. E ela conhece. Sai da bolha. Explora tudo que dá. Para desespero do homem.

Pobres Criaturas é aquele tipo de filme completo porque não é só bem costurado do ponto de vista do roteiro, que conta com diálogos divertidos e cheios de comentários sociais sobre temas importantes e até filosóficos - códigos morais, ética na vida em sociedade, filtros sobre o que é correto ou não em termos de comportamento, de educação -, mas também na parte técnica. Bella sai de alguém que se diverte sacolejando o pênis de um morto para alguém que, conscientemente e para ganhar dinheiro juntando a fome com a vontade comer, se prostitui. O corpo é dela e ela faz o que quer, né? O filme nos apresenta isso. Mas Duncan é alguém que não aceita essa liberdade toda. Em uma cena graficamente simbólica ele prende a jovem dentro de um baú, enquanto uma trilha estridente, cheia de guinchos, que poderia estar num disco do Radiohead fase A Moon Shaped Pool (2016), toca. "Você quer me aprisionar no mar?", desafia Bella. Ele se esforça pra dizer que não, mas está destruído por dentro, em suas entranhas.


 

Assim como ocorre com a trilha sonora, o desenho de produção é de uma perfeição assombrosa. Do começo em preto e branco que funciona como uma forma de demarcar as limitações intelectuais de Bella, até os cenários do próprio barco ou das cidades visitadas, tudo é evocativo, delirante, onírico. É uma obra experimental mas também fluída, daquelas que nunca cansa. Que nos surpreende a cada instante e que tem reviravoltas absolutamente satisfatórias e sofisticadas. Claro que nem tudo serão flores na jornada de amadurecimento de Bella: pobreza, roubos, pessoas querendo passar a outra para trás. E homens insatisfeitos com mulheres independentes. Em tudo quanto é canto. "Com licença, você está me tapando o sol", responde Bella após o comentário de Duncan que abre essa resenha. Como uma aventureira que desbrava o mundo, a nossa protagonista será pouco a pouco dotada de uma maior capacidade de tomar decisões por si própria. De refletir. De tomar consciência. "Eu estou aqui pra te salvar!", implora Duncan quando descobre que ela trabalha num prostíbulo de Paris. "Salvar de quê?" a gente pensa, na condição de espectador. O caso é que nessa altura do campeonato ela já se salvou. Ela sabe disso. E não haverá chance de retrocessos.

Nota: 10

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