De: Anh Hung Tran. Com Juliette Binoche, Benoit Magimel, Galatea Bellugi e Bonnie Chagneau-Ravoire. Drama, França, 2023, 135 minutos.
"Em casa eu sirvo o tipo de comida que conheço a história por trás". (Michael Pollan)
Vamos combinar que em tempos de IFood, de comida congelada e industrializada, de alimentação apressada (e sem graça) e de paladar infantil que via de regra é baseado em Nutella e leite ninho, assistir a um filme afetuoso e poético como O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant) é uma espécie de alento. Uma frase atribuída ao escrito Mia Couto nos lembra que "cozinhar não é um serviço e sim uma forma de amar os outros". E na obra de Anh Hung Tran - do ótimo O Cheiro do Papaia Verde (1993) - essa expressão parece elevada à máxima potência, especialmente ao nos fazer lembrar da importância da comida feita em casa, em toda a sua glória. Sim, aqui e ali pode haver um aspecto meio elitista nesse combo que envolve alta gastronomia luxuriante e cenários deslumbrantes, como aqueles que vemos na obra. Mas, honestamente, é meio difícil resistir.
Tanto é que a primeira meia hora do filme quase se assemelha a um documentário sobre as origens da alimentação, filmado em algum ponto da Europa. Claro, não fosse o fato de estarmos diante de uma Juliette Binoche sempre magnética - aqui ela vive a cozinheira Eugenie, que trabalha há mais de 20 anos para o chef gourmet Dodin Bouffant (Benoit Magimel), em seu belo casarão da França rural do fim do século 19. De forma quase ritualística, Eugenie e Dodin preparam, na companhia da assistente de cozinha Violette (Galatea Bellugi) e da aprendiz Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire), uma lauta refeição com peixes, carnes vermelhas, molhos, vegetais frescos e sobremesas pornograficamente vistosas - tudo encenado de forma viva, aproveitando da melhor forma as cores contrastantes da madeira e das matérias-primas elaboradas. Como se fosse um coletivo de dança com coreografias bem demarcadas, o quarteto de reveza pelo ambiente, num tipo de preparação exaustiva, mas prazerosa, que mais tarde será oferecida para um grupo de amigos de Dodin.
É tudo bonito e elegante, requintado em sua simplicidade, seja nos móveis rústicos, nos fogões campesinos, nos utensílios rudimentares - tudo de forma a mexer com absolutamente todos os nossos sentidos. Não se trata apenas de uma experiência visual. Os sons nos conectam, os aromas e sabores parecem saltar da tela - aliás, nos fóruns de internet, vi vários fãs da obra afirmando que não era uma boa ideia ir para a sessão com fome. Ainda mais em shoppings, onde muitas vezes as opções gastronômicas se baseiam em fast foods e alternativa rápidas (ou pré-prontas). Lá pelas tantas, chega à propriedade de Dodin, um jovem com um recado: há um príncipe das redondezas, que gostaria de lhe convidar para um jantar. Dodin, contra todas as possibilidades, aceita o convite. Ainda que precise lidar com questões internas, como a paixão secreta por Eugenie (que o homem tem dificuldade em formalizar, ainda que ambos se gostem muito) e a falta de apoio dos pais de Pauline, que acabam chamando ela de volta para a casa, após um período.
Em linhas gerais esse é um filme simplíssimo, mas de uma beleza quase ecumênica, elegíaca. Nesse sentido, outras artes parecem se mesclar como forma de fortalecer a metáfora para o amor, para o afeto. Quando Dodin cria coragem pra pedir Eugenie em casamento, ele brinca sobre o fato de ambos estarem casando no "outono de suas vidas", o que é a deixa para uma série de frase belíssimas e alegóricas sobre a vida em si - e de como saímos da primavera de nossas almas quando nascemos, para o inverno do fim quando nos aproximamos do ocaso. Eugenie nega tudo isso, e quer que sua vida seja um "verão permanente", mesmo que ambos estejam na casa dos cinquenta anos. É difícil não se emocionar - e de pensar como a paixão e a lealdade a alguém podem fornecer um sustento semelhante ao proporcionado pela alimentação. Com ambas fazendo conexões entre nossos órgãos - do coração ao cérebro, passando pelo estômago, pelo esôfago e outros. Fazer um filme simples mas que nos conecte não deixa de ser uma arte. Assim como sempre será uma refeição bem feita, bem elaborada - por mais modesta que seja.
Nota: 8,5
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