De: Denys Arcand. Com Rémy Girard, Sophie Lorain e Marie-Mai Bouchard. Comédia / Drama, Canadá, 2023, 115 minutos.
Se tem uma coisa que caracteriza alguns setores da esquerda mais festiva - aquela que esquece os problemas reais da sociedade, para focar em debates inócuos a respeito do uso do pronome neutro ou sobre a necessidade de cancelar aleatoriamente alguém do próprio campo no Twitter (que descanse em paz essa rede) - é a capacidade de se arrogar uma superioridade moral inabalável. A gente vê muito esse comportamento entre nossos pares progressistas - e, em muitos casos, somos nós mesmos a agir assim. Nunca erramos e os problemas do mundo estão sempre nos outros - os atrasados, com sua militância de sofá e pouca atitude. Talvez seja o excesso de coisas a se pensar. Especialmente para os brancos ricos e bem nascidos, que frequentam boas faculdades, enquanto procedem com análises antropológicas sobre questões que nem lhes dizem muito respeito. É preciso expiar a culpa. Exigir da sociedade a reparação histórica que, sim, é importante. Se a pauta for discutida de forma inteligente, claro.
No ótimo O Testamento (Testament), do sempre interessante Denys Arcand - de As Invasões Bárbaras (2003) -, a rotina de uma casa de repouso para idosos de Quebec, no Canadá, é abalada com o surgimento de um grupo de jovens manifestantes, que realizam um protesto em frente ao local contra aquilo que eles consideram uma afronta. No caso, a existência de uma pintura - um mural grande, que ocupa uma ampla parede -, que seria ofensiva às Primeiras Nações (que é como são conhecidos os povos indígenas que habitavam o Norte do Canadá, antes da chegada dos colonizadores franceses). A obra de arte, feita por um artista plástico fictício de nome Jean Josephe D'Auvigny, mostra um grupo de exploradores europeus com armas e crucifixos na mão (uma ironia bastante atual no que diz respeito à simbiose entre guerra e religião), se aproximando de um povo minoritário seminu, indefeso, com suas lanças e outros objetos típicos. "Essas são imagens de um genocídio anunciado!", brada uma das ativistas, enquanto outra filma com o seu celular, certamente com o objetivo de gerar alguns cliques em suas redes sociais.
De canto de olho, o protagonista Jean-Michel (Rémy Girard), um dos moradores do asilo, assiste tudo com resignação. E estupefação. "Os jovens de hoje estão muito sérios", comenta em tom jocoso com Suzanne (Sophie Lorain), a diretora do estabelecimento, que fica com os cabelos em pé diante da persistência dos manifestantes. Que, com seus cocares, tambores e outros adereços (que contrastam com suas peles e olhos claros e modos urbanos) afirmam que só sairão dali quando a pintura for retirada do local. O caso é que nesse sindicato das minúsculas coisas, o episódio é levado para o congresso do Canadá. Gerando discussões que serão ampliadas, com a presença da mídia sensacionalista, disposta a qualquer tipo de polêmica pela audiência (sim, não parece ser exclusividade do Brasil). Já Jean-Michel, um arquivista ocasional e escritor de nicho aposentado de 73 anos, solteiro, sem filhos e já olhando mais pro fim do que pro começo, tenta seguir sua existência em meio àquele pequeno caos.
Apostando no humor e na ironia como forma de fortalecer os seus argumentos, Arcand - ele também um senhor de 83 anos -, adota a crítica à impaciência e ao belicismo dos tempos atuais, com suas regras e códigos definitivos enfiados goela abaixo. Em uma das primeiras cenas, o homem vai a uma premiação literária anual da cidade apenas para ser apenas humilhado lateralmente por um grupo de feministas radicais, escritoras de livros com títulos autoexplicativos como Vaginas em Chamas. Em outro instante é a hipocrisia da busca pela vida saudável a qualquer preço - com seus exercícios físicos intermináveis e alimentação orgânica e vegana -, que vai para o centro do seu deboche. E, ainda assim, é preciso que se diga que o diretor não apela à mera nostalgia como recurso, ou faz com que seus personagens ajam como tiozões reacionários que têm saudades dos supostos tempos mais simples ou menos politicamente corretos. A análise do conjunto parece ser mais profunda. Como uma terapia em que todos estamos no divã.
Sim, aquelas pessoas mais velhas têm memórias, lembranças e uma falta de identificação com as coisas atuais - suas músicas, tecnologias, tatuagens ou redes sociais. "Estão dizendo para eu colocar um banheiro de gênero neutro aqui, mas isso vai comprometer todo o meu orçamento", comenta Suzanne em certa altura e é meio difícil não concordar com ela - que não parece ser uma extremista de direita contrária as pautas identitárias. O mundo real é mais complexo do que imaginamos. E não será o apagamento de uma pintura feita em mil oitocentos e alguma coisa que resolverá as falhas do capitalismo, a intolerância religiosa, a misoginia, o racismo, o aquecimento global, as guerras, as pandemias e tudo o mais. Talvez seja preciso centrar força no que interessa de fato. Pra que saiamos do tribunal das pequenas coisas - e que talvez sejam relevantes somente na rede social do Elon Musk. Depois a gente chama quem quer que seja de todes. Com gosto, diga-se.
Nota: 9,0
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