segunda-feira, 20 de maio de 2024

Novidades em Streaming - Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Aștepta Prea Mult de la Sfârșitul Lumii)

De: Radu Jude. Com Ilinca Manolache, Nina Hoss e Dorina Lazar. Comédia / Drama, Romênia / França / Croácia / Luxemburgo, 2023, 164 minutos.

Vamos combinar que só o título do novo filme de Radu Jude já é um atrativo à parte. E se Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu Aștepta Prea Mult de la Sfârșitul Lumii) não clareia totalmente a ideia por trás da obra, no mínimo prepara, em alguma medida, o estado de espírito do espectador. Ainda mais pra quem já está familiarizado com a obra de Jude que, com seu irresistível cinismo e uma propensão ao deboche, costuma usar sua arte para uma severa crítica à contemporaneidade - seja na incapacidade institucional, nos equívocos do capitalismo tardio, na incomunicabilidade humana em um período em que nunca estivemos tão conectados, ou mesmo da hipocrisia da sociedade e, especialmente, de seu conservadorismo atroz. Ao cabo é um conjunto que se soma a outras questões atuais e que vão desde as guerras e a pandemia, passando pelo avanço da extrema direita, da xenofobia e outros preconceitos. Foi assim com o espetacular Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021) - um dos nossos preferidos na lista daquele ano. É assim com este, que foi o enviado da Romênia para o Oscar de 2024 e que está disponível na Mubi.

Na trama, acompanhamos a rotina conturbada da jovem Angela (Ilinca Manolache). Empregada de uma produtora de vídeo, ela é uma assistente de produção que está encarregada de fazer uma série de entrevistas sobre segurança do trabalho para uma multinacional estrangeira. De lá para cá ela anda de carro em uma frenética Bucareste, a contrastante capital romena com sua arquitetura decadente e atrasada, que se mescla com uma modernidade invasiva, intrusiva - de carros, de prédios, de estradas e que juntos atraem o caos, a desordem, os gritos, o tumulto (exterior e interior). Em uma jornada excruciante, filmada em um preto e branco que parece apenas evidenciar o senso de declínio generalizado, Angela trabalha e trabalha - 15, 16 horas por dia. Não tem tempo pra nada, escapa por pouco de acidentes, berra no trânsito com sujeitos brigões, machistas, misóginos. É 2024 e, sem terapia em dia, talvez fosse impossível simplesmente viver - e é isso que Jude parece querer nos mostrar o tempo todo. O mundo caminha. Mas pra onde exatamente?


 

Nas entrevistas de Angela, pessoas fraturadas, machucadas - literalmente. Empregados que sofreram acidentes de trabalho e que agora estão incapacitados de exercer suas atividades, desassistidos, alguns até em cadeiras de rodas. Sob a desculpa de uma pequena quantia de dinheiro ofertada, a multinacional pretende fortalecer a campanha interna de combate a esses incidentes laborais. Ao passo em que se esforça para evidenciar certa responsabilidade com seus trabalhadores - o que talvez faça a empresa se livrar de pesadas sanções jurídicas (se é que as sanções jurídicas da Romênia são pesadas). Enquanto circula de um local a outro, Angela masca chicletes incansavelmente, corta as pistas, ouve música eletrônica pós-moderna, como forma de relaxar. Por vezes o filme parece nos conduzir a algum videoclipe do Chemical Brothers dos anos 90, com seu caráter calculadamente frenético - que é interrompido pelo toque de celular da protagonista, que, de forma irônica, ecoa uma versão analógica da Ode to Joy, de Beethoven.

Aliás, nesse sentido, Jude é muito hábil em encaixar as suas críticas em pequenos instantes, em sequências que parecem ser apenas transitórias ou aleatórias, mas que dizem muito. Em uma das visitas, Angela é extremamente bem recebida pela família de um jovem que, após um acidente, perdeu o movimento das pernas - um dos que participará das gravações. O pai do rapaz parece um sujeito apenas encantador, daqueles que recita versos e poemas, ao mesmo tempo em que elogia Viktor Órban - "um verdadeiro líder". É essa complexidade que também parece povoar o todo e que torna a experiência com Não Espere Muito do Fim do Mundo tão rica. A gente parece saber onde estão as falhas coletivas, imaginamos o buraco em que estamos indo. Como sociedade, como indivíduos, e tudo parece apenas inescapável. Angela, por exemplo, mesmo com um trabalho sofrível, que lhe paga pouco e lhe exaure, ainda encontra tempo para criar um alterego hedonista, machista e racista nas redes sociais (um tal de Bobita, que alcança um grande número de visualizações com seus vídeos), e que evidencia ainda a ignorância lancinante de nossos dias. A intenção com essa figura torpe e sexista é debochar. Mas vai saber se os seguidores não estão de fato, gostando?

 

 

Em paralelo, a obra ainda é recortada por uma série de imagens de uma taxista e de sua rotina de trabalho nos anos 80, em tempos mais simples, mais puros, mais singelos. Será mesmo? Talvez não seja por acaso que essa taxista também se chame Angela, numa brincadeira de "eu sou você amanhã". Quebrando o claro escuro da fotografia sombria e pesada da rotina da Angela da atualidade, a Angela do passado também precisa lidar com a misoginia, a violência, a desconfiança, o medo. Naquela época a novidade eram as mulheres no mercado de trabalho - quebrando o paradigma esperado de ser a dona de casa, que cuida do marido, dos filhos. Nos tempos atuais, as mulheres muitas vezes trabalham. E só trabalham. Tem pouco tempo para os prazeres da vida, para uma existência mais mundana, com amor, sexo, uma boa refeição, algum tipo de qualidade de vida, de acolhimento. Ainda que nas ruas alvoroçadas de Bucareste se vejam anúncios publicitários sobre corpos perfeitos, tecnologias sustentáveis, futuro consciente, economia justa. Não dá pra esperar muito do fim do mundo. E, vá lá, talvez só o que reste é avacalhar no Tik Tok. Porque muito mais do que isso talvez não dê mais tempo de fazer.

Nota: 9,0

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