segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Novidades em Streaming - Ficção Americana (American Fiction)

De: Cord Jefferson. Com Jeffrey Wright, Sterling K. Brown, Issa Rae e Leslie Uggams. Drama / Comédia, EUA, 2023, 118 minutos.

Ambientes domésticos inóspitos, infâncias difíceis, problemas relacionados ao uso de drogas, prostituição, violência policial - vamos combinar que o combo que reflete a experiência afroamericana na literatura dificilmente foge desses clichês. É uma coisa quase automática. Aliás, quanto mais próxima desse tipo de estereótipo, mais a obra parece adequada para que o branco médio disposto a consumi-la, se sinta absolvido de algum tipo de culpa. Especialmente no campo acadêmico progressista, onde demorados debates a respeito desses livros "viscerais, crus, realistas", parecem apenas uma forma de fetichizar os traumas negros, que ficam reduzidos a esses lugares comuns. Para a indústria e para as editoras, talvez essa seja uma forma de apelar para a suposta diversidade. Autores negros, lutando por representatividade, em um ambiente de branquitude reinante. Uma espécie de "pornografia da pobreza" travestida de ficção. Isso é salutar?

O caso é que tudo que o escritor Thelonious Ellison (Jeffrey Wright), o protagonista do indicado ao Oscar Ficção Americana (American Fiction), quer, é lançar um novo livro. E já há algum tempo ele tem se empenhado em tentar conseguir uma editora que tope publicar seu romance Os Persas - que tem encontrado uma série de barreiras por não ser um legítimo "livro de negros" (ou seja lá o que isso signifique). E como desgraça pouca é bobagem, ele acaba suspenso da universidade em que leciona, em Los Angeles, após uma discussão com uma de suas alunas. Para arejar um pouco a mente ele resolve retornar a sua Boston natal, onde visitará seus irmãos e sua mãe e também participará de um sarau literário. Ao cabo, Thelonious é até alguém respeitado em seu meio. É um novelista de estilo rebuscado, sofisticado. Só que suas obras não vendem. Ainda assim, o painel excessivamente esvaziado o surpreende. E não demorará para que ele entenda o motivo: um seminário concomitante com a escritora negra do momento, uma certa Sintara Golden (Issa Rae), que tem atraído a atenção do público com o seu pungente (e altamente estereotipado) "Nós vive no gueto" (sim, assim mesmo como está escrito), sua recente obra.

 

 

E para quem está tentando emplacar um novo romance, ver um produto que esvazia a pauta racial ao apelar para a vulgaridade empobrecida do chavão, é algo que o decepciona. E tudo piora com os problemas familiares que passam a surgir aos borbotões - que vão da irmã médica Lisa (Tracee Ellis Ross) que sofre um inesperado infarto fulminante à mãe Agnes (Leslie Uggams), que passa a padecer do Mal de Alzheimer. Enquanto tenta encontrar algum equilíbrio na vida doméstica, que envolve ainda o complicado irmão Cliff (Sterling K. Brown, nosso eterno Randall de This Is Us) e uma candidata a namorada, a advogada Coraline (Erika Alexander), Thelonious toma uma drástica decisão: escrever um romance satírico literário, que debocha de todos os clichês esperados na literatura negra. Sob o pseudônimo de Stagg R. Leigh, um suposto (e falso) fugitivo da polícia, constroi My Pafology. Que mais adiante simplesmente se chamará Fuck! Só que a ideia de zombar do mercado editorial dá meio errado, quando uma editora fornece um inacreditável adiantamento de US$ 750 mil ao autor. O que envolve ainda a aquisição de direitos que converterá o projeto em filme.

Sim, tudo soa meio exagerado, satírico, no filme de estreia de Cord Jefferson, que está disponível na Amazon Prime. Condição reforçada pelos diálogos ferinos, que não deixam de apontar a sua mira para a hipocrisia do mercado editorial, que utiliza a desculpa da diversificação do catálogo como uma mera ferramenta de marketing. Em certa altura, por exemplo, um editor conversa com Thelonious sobre a adaptação do livro para as telonas e se surpreende quando ele pede um vinho sofisticado. Ou simplesmente não conversa como um mano da quebrada. Em alguma medida o filme está sempre brincando com esses clichês de forma a subvertê-los. Em uma sequência, acreditamos que possa haver um episódio de violência quando o namorado de Coraline aparece. O policial que surge é gente boa. Os negros vistos em tela são bem sucedidos. O que não evitará o fato de eles precisarem enfrentar as expectativas do mundo que os rodeia. Engraçado, reflexivo e ousado, esse é aquele tipo de projeto que coloca o dedo na ferida quando o assunto é a complexidade das vivências e experiências negras - que, sim, são inegáveis vítimas dentro do tecido social. Mas que certamente tem mais para entregar para além dos estereótipos e do apelo a uma diversidade encapsulada e pronta para o consumo de brancos progressistas.

Nota: 9,0

 

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