De: Christopher Storer e Joanna Calo. Com Jeremy Allen White, Ebon Moss-Bachrach, Ayo Edebiri e Lionel Boyce. Drama / Comédia, EUA, 2022/2023, duas temporadas.
Um grupo de pessoas neuróticas que vive para o trabalho, que possui pouca (ou nenhuma) vida social, que se frustra com o caos econômico mas que parece acreditar em discurso meritocrático, que reclama do governo e de suas eventuais burocracias, impostos e outras exigências e que, em alguns casos, ainda possui uma família que destroi o teu psicológico - mas ainda assim tu te mantém próximo porque, né, é a família, fazer o quê. Tudo isso ainda meio que embalado em um uma narrativa de autoajuda, que utiliza metáforas do militarismo e alegorias do mundo esportivo para evidenciar que, mesmo em um mundo de adversidades, de individualismo e de problemas generalizados ainda é possível superar tudo isso e prosperar. Apresentação de slides daquele daquele coach messiânico, dissimulado e de índole duvidosa que ganha dinheiro em cima de incautos? Não, apenas a série O Urso (The Bear) que, em suas duas temporadas, conseguiu ganhar não apenas o apreço da crítica, mas também do público.
E quando eu falo de público não cito apenas os homens brancos, héteros, de classe média e conservadores - você já viu esse tipinho meio básico zanzando por aí em agências de publicidade ou em algum escritório apertado onde ele vive o sonho americano (ou brasileiro) de ganhar R$ 5 mil por mês -, que poderiam ser facilmente o alvo de uma série como essa. Há muitas pessoas - amigos meus, inclusive - do campo progressista, que caíram nesse golpe e que a estão propagando como algo muito realista ou mesmo profundo sobre esse ambiente tóxico e caótico (no caso, o do universo dos restaurantes e de suas rotinas eventualmente abjetas), ainda que já haja chefs de cozinha fazendo um contraponto à forma como tudo ali é retratado. Não vou nem citar que os personagens vistos são todos meio que unidimensionais - não há complexidade, o que aumenta a dificuldade de haver empatia. Especialmente pela dupla central, os primos Carmy (Jeremy Allen White) e Richie (Ebon Moss-Bachrach), duas pessoas miseráveis do ponto de vista psicológico e de personalidades bastante parecidas, que não sabem muito bem o que estão fazendo de suas vidas.
Para além dessas figuras que vão no limite entre o carisma meio canastrão e a dor profunda transmitida pelo olhar - especialmente nos raros momentos em que a coisa não tá excessivamente frenética (pra não dizer irritantemente confusa) - há outras personas orbitando a dupla, tendo especial destaque a jovem Sydney (Ayo Edebiri), que funciona direitinho como aquela pessoa meio sem experiência mas que, com muita força de vontade, poderá ajudar a colocar o The Beef, o restaurante herdado por Carmy e Ritchie de seu falecido irmão Michael (Jon Bernthal, absolutamente SEMPRE uma figura interessante) nos eixos. Sim, a série criada por Christopher Storer e produzida por, entre outros, Joanna Calo e Hiro Murai, fará de tudo para nos lembrar o tempo todo de que ter um restaurante, especialmente após a pandemia, parece ser um negócio péssimo. Muitos locais foram fechados na época e eu juro que lá pelas tantas imaginei que apareceria algum personagem aleatório pra dizer "olhaí o resultado do fique em casa".
Bom, posto tudo isso simplesmente pra quê o estresse? Ok, ok, não vou ser tão chato a esse ponto porque se não houvesse um sujeito fudido ferrado da cabeça e que já foi chef de cozinha renomado em outras paragens, que estivesse interessado em reabilitar um espaço gastronômico meio decadente, ainda que tradicional, talvez sequer houvesse série (como naquela brincadeira sobre se Breaking Bad fosse feita no Brasil não existiria Walter White e cinco temporadas porque era só ir até o SUS). Mas volto a dizer, pra quê? Trabalho, ao cabo, não é apenas pra que a gente possa ganhar o nosso dinheiro pra pagar os boletos e, enfim, sobreviver? É preciso mesmo esse massacre que exibe pessoas trabalhando de 14 a 18 horas dia, parecendo ainda ter certo orgulho disso? Em certa cena, por exemplo, Tina (Liza Colón-Zayas) recebe uma faca de presente de Carmy. E, uau, fez lembrar o pseudoinfluencer que ganha um sonho de valsa do chefe e publica no Insta. "Ciência, bebê", diz ela mais adiante, diante de uma panela nova. Oi? Tina, o que mais você faz da vida, além de suportar um bando de jovens instáveis na cozinha de um restaurante?
O auge de tudo é quando Carm, mesmo sendo uma espécie de incel do mundo gourmet, consegue se (re)aproximar de Claire, uma paixão de infância. Que, para a alegria dos cabaços de plantão, é lembrada por Richie e Michael como aquela esquisitinha que no passado era gordinha e de óculos e que, agora, tá a maior gata. É sério isso? O caso é que Claire, lá pelas tantas, tenta lembrar Carmy do que é a vida pra além daquele ambiente. "Eu nunca fui numa festa", diz ele, com uma naturalidade desconcertante, na noite em que ele, supostamente, vai então a sua primeira festa - algo que nem o maior nerdola anarcocapitalista, com pendor pro libertarianismo seria capaz de afirmar. No final dessa mesma noite, Carmy não convida a moça para a sua casa ou para um motel: ele resolve a levar para... o restaurante, claro. Onde mais? E ao chegar lá, depois das 23h, surpresa! A dupla encontra a galera simplesmente TRABALHANDO, discutindo sobre instalações, cabeamentos, equipamentos e qualquer outra coisa. Vida pessoal? Ir prum Bar? Assistir um filme? Esquece. Essa galera é o oposto dos personagens de Friends. Na série dos anos 90, as pessoas não trabalhavam. Aqui elas SÓ trabalham. Aliás, até nos filmes do Ari Kaurismaki, que tanto critica o ambiente de trabalho tóxico, o operário tem direito ao lazer escapista. Mas vejamos pelo lado bom: Carmy consegue beijar Claire pela primeira vez. Tendo o restaurante como cenário de fundo - aliás, o cenário ideal do liberal classe média que tem o sonho de empreender.
Ah, mas a série ao menos entretém, poderá dizer alguém. Sério? Ver um grupo de pessoas adultas gritando o tempo todo, proferindo palavrões no modo infinito e agindo de forma infantilizada mesmo quando próximos dos 40 anos? Às vezes a coisas é tão caótica, tão hiperbólica e maximalista do ponto de vista da BAGUNÇA, que a vontade é de simplesmente abandonar - sendo o auge da experiência nesse sentido, o sexto episódio da segunda temporada, uma das coisas mais intragáveis que já tive o desprazer de assistir. "Ãin, mas é pra ser uma metáfora para a vida, suas dores, medos, incertezas, dúvidas". Sim, mas talvez dê pra fazer isso com um pouco mais de sutileza. Com menos berro e instabilidade. Com menos discurso raso e superficial - sério, foi demais pra mim o Carmy perguntando, como se fosse um adolescente de doze anos, se Claire era "sua namorada". Ou ver o tio Jimmy (Oliver Platt) usando uma analogia com o beisebol pra reforçar um tipo de masculinidade torpe, redpillada e confusa. "Você quer ser o cara? Então seja o cara!". Uau, que diálogo! Pode haver um certo magnetismo sedutor nesse negócio de basicamente entregar seu corpo, sua mente, sua alma, seu sangue e suas vísceras para o seu trabalho. Há uma coisa no cinema de corpo que magnetiza. Mas aqui não. Eu não caio nessa. E espero que mais pessoas possam ser livres para falar a verdade sobre essa série lamentável. Em tempo: vem aí a terceira temporada. A notícia boa é que dá pra passar longe sem remorsos.
Nota: 3,5
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