quinta-feira, 27 de junho de 2024

Novidades em Streaming - Todo Mundo Ama Jeanne (Tout Le Monde Aime Jeanne)

De: Céline Devaux. Com Blanche Gardin, Laurent Lafitte e Nuno Lopes. Comédia / Drama, França / Portugal, 2022, 97 minutos.

Vamos combinar que com Todo Mundo Ama Jeanne (Tout Le Monde Aime Jeanne) talvez tenhamos atingido o auge do carisma quando o assunto são as "vozes na cabeça". Sim, todo mundo possui aquele pensamento meio intrusivo que nos invade em diversos momentos do nosso dia. Só que as criaturas animadas que acompanham Jeanne (Blanche Gardin) são absolutamente zombeteiras, debochadas, irônicas. A ponto de tirar sarro dela quando ela resolve simplesmente fumar, após um momento de estresse. "Câncer, enfisema, câncer, enfisema" cantam de forma enternecedora - com uma voz quase infantilizada - esses pequenos trolls do inconsciente. Aliás, como se já não bastasse se sentir humilhada por uma série de fatores mundanos - o mais recente envolvendo a perda da reputação no trabalho, após um projeto científico que visava a coleta de partículas de plástico do oceano sair totalmente errado -, ela ainda precisa lidar com a irreverência desses demônios interiores.

Estreia em longas da diretora Céline Devaux, essa é uma obra carismática, que diverte sem nenhum esforço - ainda que, aqui e ali, aborde também assuntos mais sérios e que envolvem desde a necessidade de lidar com as próprias inseguranças, até a superação do luto. Jeanne é uma figura arrogante, presunçosa, que poderia ser situada como aquele tipo de progressita acadêmica - que se sente moralmente acima a alguém porque, simplesmente, trabalha em projetos ambientais. Seu ar é superior, seu nariz está sempre empinado, os sapatos de salto ecoam pelas ruas - no seu íntimo talvez haja um problema de autoestima que grita, e que é justamente evidenciado pelos pensamentos intrusivos. Depois que a engenhoca para coleta de fragmentos de entulho marítimo não vinga, ela viraliza em um vídeo patético em que mergulha no mar para tentar salvar o equipamento. Pior do que isso, sem credibilidade, o único caminho para não falir totalmente (e até ser presa por dívidas com o Estado), talvez seja vender o antigo apartamento da mãe, que fica em Lisboa.


 

E será retornando à Portugal que a gente perceberá, aos poucos, que parte dos traumas tem - novidade! -, justamente a ver com a relação complexa com a sua genitora. Uma pessoa amarga, que se suicidou fazendo recair a culpa sobre Jeanne, e que sempre lhe julgava - seu comportamento, hábitos, peso corporal. O que faria a protagonista desenvolver uma série de inseguranças - e que respingaria na conturbada relação com os homens. Sempre desconfiada, amedrontada, distante. No aeroporto, aguardando o voo para a capital portuguesa, ela conhece o carismático Jean (Laurent Lafitte), um cleptomaníaco charmoso, que se aproxima em meio a recordações de tempos distantes. "Fomos colegas na French High School, de Lisboa, você é a garota que todos amavam, que todos desejavam", comenta o rapaz. Entre a ansiedade e o meio caminho para a depressão, Jeanne suporta o deboche dos amigos imaginários que habitam seu cérebro. Mais adiante ela pesquisa no Google "cachorros grandes sendo afetuosos com bebês". É a sua forma de sair daquele contexto meio insuportável, que ela recém adentra.

Ágil, a comédia não perde tempo em longas divagações de seus personagens. As tensões, culpas e medos interiores que Jeanne sente, são abraçados a cada olhar cínico, a cada pensamento sarcástico, a cada palavra em tom de chacota que, claramente, ela usa como uma espécie de mecanismo de defesa. Em terras portuguesas, ela encontra um ex-namorado (ou peguete mesmo) de nome Vitor (Nuno Lopes) que, forçando a barra no estereótipo do esquerdomacho, saca um violão para tocar uma música meio insuportável após o sexo. As vozes na cabeça gritam. E ela fica confusa entre Vitor e Jean ou o que quer que seja. Em entrevista à Mubi, a diretora, que também é roteirista e ilustradora, explicou que a ideia do filme partiu daquilo que era uma espécie de diário ficcional. "Eu criei essa super-heroína ecológica, que afirmava a si mesmo que esse era o trabalho mais útil do mundo e que ela não poderia falhar nele", afirmou. Só que somos seres humanos. E somos falhos, evidentemente. Ao escancarar de forma tão criativa e sincera suas reflexões, Devaux estabelece um vínculo irresistível com o espectador. É delicioso e está disponível na Mubi.

Nota: 8,0


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