De: Stanley Kubrick. Com Nicole Kidman, Tom Cruise, Sydney Pollack e Todd Field. Drama / Suspense, EUA / Reino Unido, 1999, 159 minutos.
Pode ter sido apenas uma coincidência, mas o ano de 1999 foi não apenas pródigo em gerar grandes filmes, mas meio que premonitório na hora de levar as tensões da virada do milênio para a telona. Eram tempos de incerteza que levariam Hollywood a investir em obras que jogavam luz em temas diversos, como, avanços tecnológicos (Matrix), corrupção corporativa (O Informante), a hipocrisia e a decadência da sociedade (Beleza Americana), sentimento de vazio na modernidade (Clube da Luta) e até o simples medo da morte (O Sexto Sentido), que pareciam assombrar a população que aguardava os anos 2000 como uma espécie de ponto de ruptura - que, alegoricamente, poderia ser simbolizado pelas tenebrosas perspectivas frente ao Bug do Milênio. Sim, e olhando os títulos que foram exibidos naquele ano, também chamaria a atenção a qualidade das produções. Uma melhor do que a outra, cada uma em seu segmento.
E talvez não seja por acaso o fato de o contexto daquela época ter fornecido a matéria-prima ideal para tantos artigos de imprensa, estudos e outros documentos que apontariam aquele período como um ponto de ruptura para o cinema - resultado do encontro entre os estúdios e sua voluptuosa quantia de dinheiro e uma diversidade de cineastas independentes (ou não), com visão. "O ano mais indisciplinado, influente e impenitentemente prazeroso de todos os tempos, em termos de filmes", como resumiria o jornalista cultural Brian Raftery. E vamos combinar que não deixa de ser uma grande ironia datar de 1999 justamente a última obra de Stanley Kubrick. Era o aguardado retorno após dez anos de hiato, mas o diretor viria a falecer alguns dias antes da conclusão de De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut), produção baseada no livro Breve Romance do Sonho, de Arthur Schnitzler. Foi-se o realizador. Ficou o clássico moderno.
Aliás, mais um escárnio perceber como esta é também uma obra representativa das tensões da virada do século. No centro da trama densamente conduzida, acompanhamos o esfacelamento de um casamento burguês, após uma noite de festa em que uma série de acontecimentos parecem burlar alguns limites éticos de um matrimônio. Tudo embalado em uma narrativa hipnótica de paranoia, de conspiração e de segredos guardados a sete chaves por uma parte da classe endinheirada, hipócrita, e, em alguma medida, hedonista, ainda que provavelmente insegura diante das mudanças vindouras. E, vamos combinar que não deixa de ser interessante ver um casal que estava junto na vida real - no caso Nicole Kidman e Tom Cruise que, por sinal, se separaria apenas dois anos depois -, em uma série de diálogos honestos sobre desejos não realizados, vontades sexuais nunca concretizadas ou impulsos primitivos apenas imaginados.
Em alguma medida esse é um filme relativamente simples - ainda mais diante da magnitude de outras obras de Kubrick -, ainda que absolutamente envolvente, que flui sem pressa, em sua medida de tempo, quase em câmera lenta, e que parte de um pequeno instante de surto do médico Bill Harford (Cruise), que fica perplexo quando a sua estonteante esposa, a curadora de arte Alice (Kidman), lhe revela o fato de, por muito pouco, não ter abandonado a ele e sua filha pequena para viver um grande amor, após ter conhecido um oficial da marinha, no passado. Ao mesmo tempo que estas imagens retornam à sua cabeça e lhe atormentam, Bill se vê obrigado a sair de casa para um atendimento à família de um paciente que vêm a óbito. Tendo início uma longa e fervilhante madrugada em que o protagonista salta de um local a outro, chegando a um pub em que um antigo (e discreto) colega, de nome Nick (o diretor Todd Field) toca piano em uma banda de jazz.
Nick fará a ponte para que Bill chegue até uma grande mansão fora da cidade de Nova York, onde um grupo de pessoas mascaradas participa de orgias sexuais, de jogos sensuais e de fantasias eróticas. Bill está lá em segredo, mas não demorará para que ele seja, com o perdão do trocadilho, desmascarado, dando início a uma história de perseguição - especialmente após uma jovem mulher lhe revelar que ele está em perigo. Sexy e misterioso, animalesco e sacro, inquietante e onírico, ousado e complexo, esse é um projeto que debate, nas suas entrelinhas, uma série de tabus sexuais e de fetiches excêntricos que surgem, aqui e ali, como alegorias que quebram certa lógica estabelecida pelos códigos morais de vida em sociedade, com seu recato hediondo, luzes de Natal solenes e realidades encobertas. Um filme que suscita ainda uma série de discussões, seja por conta dos cenários, dos figurinos, das obras de arte ou da trilha sonora - todos elementos que parecem esconder informações a mais, fazendo inclusive a festa dos conspiracionistas. O ocaso de Kubrick não poderia ser melhor. Ajudando a consolidar a passagem de 1999 para 2000 como uma época complexa, vibrante e incerta, que anteciparia uma série de temores decorrentes do mal-estar generalizado que habita a pós-modernidade.
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