terça-feira, 11 de junho de 2024

Tesouros Cinéfilos - O Homem ao Lado (El Hombre de al Lado)

De: Gastón Duprat e Mariano Cohn. Com Rafael Spregelburd e Daniel Aráoz. Comédia / Drama, Argentina, 2009, 110 minutos.

Em uma das melhores sequências de O Homem ao Lado (El Hombre de al Lado), Leonardo (Rafael Spregelburd) escuta música ao lado de um amigo, que recebeu em sua casa para um jantar. Na cena, ambos estão tediosamente dispostos no sofá, enquanto divagam longamente a respeito do caráter tribal, quase animalesco da melodia que sai das caixas de som - algo que se assemelha a um pós punk meio sombrio, que talvez só a Pitchfork fosse capaz de avaliar de forma positiva (o que já será o suficiente para que caia nas graças de pseudointelectuais afetados e ávidos pelas novidades musicais, especialmente do exterior). Um dos aspectos que chama a atenção nesse projeto de canção é a percussão - algo meio selvagem, uma batida de de tambor meio seca, caótica, que foge da lógica. Leonardo resolve baixar o volume no equipamento de som. E descobre que o tal batuque nada mais é do que o seu vizinho, da casa ao lado, martelando incessantemente na obra que, há dias, executa.

Sim, pode parecer apenas mais um instante turbulento entre dois vizinhos que não conseguem se entender de jeito nenhum. E que, de quebra, evidencia o quão diametralmente opostos eles são, em suas realidades divididas. Leonardo é o designer de produto bem sucedido, a ponto de residir na única casa da argentina projetada pelo arquiteto franco-suiço Le Corbusier. É nesse espaço doméstico confortável, que ele mantém uma rotina cômoda em meio a criação de novos produtos e no atendimento a estudantes interessados em saber mais sobre estes temas. Sua esposa, a terapeuta Ana (Eugenia Alonso) é a sua companheira em eventos sofisticados e em uma rotina de progressismo de sofá (condição reforçada por quadros com imagens de Che Guevara e por um discurso de inclusão lateralizado, que funciona bem entre os pares, normalmente aquela burguesia meio esnobe que, saída das universidades, possui o mínimo de consciência social). Claro, desde que não atrapalhe seu dia a dia, sua rotina, seus vinhos, a gastronomia chique e as pompas do dia a dia.


 

Só que essa rotina de sofisticação, de refinamento e de uma distância bastante segura dos problemas reais do mundo, será quebrada com a chegada de Victor (Daniel Aráoz), o vizinho - um sujeito meio rústico, talvez xucro, um "troglodita", como define Leonardo em certa altura. Victor está fazendo uma reforma na casa contígua e resolve simplesmente abrir uma janela na medianeira entre as casas, sob a alegação de poder receber um pouco do sol da manhã. Leonardo fica furioso com aquilo que considera uma espécie de invasão de sua privacidade e inicia uma verdadeira guerra particular na tentativa de demover Victor, que só quer um pouco de luz, dessa ideia. O vizinho lhe promete instalar uma cortina ali. Ninguém será invasivo. Só que ao rachar a sua parede, outras fraturas emergirão. Que evidenciarão  que Leonardo - um sujeito afetado, presunçoso, individualista e incapaz de se comunicar - tem outros problemas. Que ele mantém encobertos sobre a fachada de normalidade.

Em alguma medida, um dos méritos dessa ótima comédia da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn - dos excelentes O Cidadão Ilustre (2016) e Minha Obra-Prima (2018) que, em alguma medida, replicam esse distanciamento entre a elite intelectual e o provincianismo cotidiano, bem como a incapacidade de diálogo na atualidade -, é o de não tomar partido nesse embate, por mais mesquinho (ou tolo) que este ou aquele lado sejam. Para Leonardo, o golpe simbólico em um prédio tão arquitetonicamente importante talvez seja tão ou mais "agressivo" do que o suposto caráter invasivo de uma janela (por mais que ela seja o portal para toda a desgraça que se iniciará dali pra frente). O que se soma ainda a masculinidade claramente fragilizada de um homem incapaz de lidar com alguém tão mundano, tão autêntico e tão vigoroso como Víctor, com sua voz de trovão, porte assustador e uma leveza paradoxal em termos de sociabilização. Em alguma medida, essa é uma obra simples que respinga na atualidade, afinal, nunca pareceu tão difícil se relacionar com qualquer pessoa que fuja do padrão a que estamos acostumados. Estamos intolerantes e individualistas, mas também invasivos, espaçosos. É a fratura social em formato de metáfora: uma rachadura na parede que resulta no caos inesperado. Vale demais!


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