segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Tesouros Cinéfilos - A Outra História Americana (American History X)

De: Tony Kaye. Com Edward Norton, Edward Furlong, Elliot Gould, Beverly D'Angelo e Stacy Keach. Drama, EUA, 1998, 118 minutos.

É muito provável que poucos filmes no mundo sejam tão devastadores quando este A Outra História Americana (American History X). Aliás, é uma obra lançada há 20 anos que se mantém incrivelmente atual, sendo, em muitos aspectos, visionária a respeito dessa onda neonazista e ultranacionalista que vivemos nos dias de hoje. Estamos em um mundo de ódio, de preconceito e de intolerância racial - e figuras como o Derek (Edward Norton) que vemos em cena, definitivamente "saíram do armário", legitimadas por políticos que flertam com o extremismo, como é o caso de Trump e Bolsonaro. Sob a desculpa da manutenção da família de bem, honesta, trabalhadora, temente a Deus, que faz o País crescer, uma enxurrada de violência para tudo aquilo que desvie do padrão esperado pela sociedade eugenista. Preto, pobre, gay, trans, imigrante, mulher... qualquer coisa que não seja o homem branco, hétero (ou ao menos que se esforça para ser) não merece consideração.

E nesse cenário, o filme do diretor Tony Kaye é uma porrada. Uma porrada de cima pra baixo, que nos faz ir as lágrimas o tempo todo por que, cara, é muito real. Dolorosamente real. Derek, a sua figura central, "aprendeu" a ser nazista nos almoços de domingo - ouvindo seu pai bombeiro sobre a "ameaça comunista" e a invasão da cultura negra, que tira espaço dos brancos (nas faculdades, no mercado de trabalho). Na vida adulta o sujeito se tornou um seguidor da cartilha do fuhrer: não por acaso, assassina covardemente dois assaltantes (negros, claro), que tentavam invadir a sua casa. O sadismo com ele executa os homens, com uma fúria que se sobressai em todos os seus brutais movimentos, contrastará com os seus movimentos mais econômicos e modos mais plácidos (e até amorosos) de quando ele sai da cadeia, agora um sujeito reformado e tentando se reintegrar a sociedade. Mas como ser um "ex-nazista", em um mundo em que este fato está marcado - literalmente inclusive (com tatuagens) -, na tua personalidade?


Quando sai da cadeia, Derek não quer saber de mais nada disso: aprendeu a lição. Aprendeu sobre o absurdo de uma "luta" que não tem nenhum sentido e em que todos perdem. Que resulta só em morte, em dor e em famílias devastadas. Só que o seu irmão mais novo (Edward Furlong) está seguindo os seus passos. Ou ao menos os passos de antes de ser preso. Está adorando a ideia de se sentir incluído em algo, mesmo que esse algo seja a convivência insuportável com nazistas babacas, reacionários branquelos. Aliás, ele está muito próximo de um dos líderes de uma gangue de opressores, de nome Cameron (Stacy Keach) e que já fez a lavagem cerebral no rapaz. E, para tentar evitar uma tragédia ainda maior, Derek lhe contará a sua história na cadeia - que será apresentada como um valioso flashback. Como são praticamente todos os flashbacks que vemos no filme: valiosos. E filmados em um melancólico preto e branco.

Mil novecentos e noventa e nove foi um ano meio esquisito no Oscar e pra mim é simplesmente inacreditável que esse filmaço tenha sido esnobado na premiação. Único indicado, Norton viu a estatueta parar, acredite, nas mãos de Roberto Benini por A Vida É Bela (1998). E a carga emocional de Derek, as nuances de seu comportamento, seus gestos e olhares - violentos e latentes quando um nazista consolidado, emocionalmente devastado (e até fragilizado) quando sai da prisão -, é fruto de um trabalho espetacular. Uma performance que te faz odiar ele com todas as forças quase o tempo todo. Mas que também te faz compreender as suas motivações (ou o despertar do ódio) e, mais tarde, seu arrependimento e a sua dor (ninguém nasce nazista, vale lembrar). E o contraste da interpretação nas cenas da briga no almoço (a melhor e mais triste parte do filme) e, quase no final, na sequência com o irmão, no banheiro, dão conta de sua comovente entrega a um personagem com muitas camadas.


No mais, roteiro, montagem, desenho de produção, fotografia... absolutamente tudo funciona no filme. Tudo. Todos os detalhes. Repare por exemplo como, para reforçar o patriotismo de Cameron, ele toma água em um copo que tem a estampa da bandeira dos Estados Unidos, em uma cena em que conversa com o protagonista. O mesmo valendo para a presença da religião, como um componente doutrinador (como na sequência do show de hard rock com letras que misturam orgulho hétero e branco com adoração ao Senhor). Lá pelas tantas Elliot Gould, que com o seu Murray traz uma boa dose de humanismo à trama (dá vontade de pular na tela e dar um abraço nele, naquela mesma sequência do almoço) fala para Doris (Beverly D'Angelo) que ela não "conhece o mundo que seus filhos vivem" por que, afinal, ela parece não conhecer mesmo. Só que todos aprenderão a lição da forma mais dolorosa possível. Uma lição que talvez chegue tarde para a humanidade. Que convive com crimes de ódio e a formação de grupos neonazistas que, agora, saem da internet. E tornam verdadeiro o horror visto em uma obra de ficção como essa. Tristes tempos.

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