De: Armando Praça. Com Marco Nanini, Denise Weinberg e Demick Lopes. Drama, Brasil, 2019, 97 minutos.
Vamos combinar: um filme como Greta ter sido concluído em pleno andamento do (des)governo Bolsonaro - aliás, com uma gestão que não tem medido esforços para destruir a cultura brasileira, especialmente a mais popular -, é quase um milagre a ser comemorado. É a arte que respira, que provoca. Que ousa discutir temas eventualmente mais transgressores e que fogem da lógica estabelecida pelo status quo. E que disputa espaço em editais quadrados, que vetam esta ou aquela temática para que a família de bem não fique chocada em ver a realidade na tela. Sim, a realidade. Aquela que não é tão bonita. Não tão formosa. Que é dura, árida, desalentadora. E que na estreia de Armando Praça ganha o corpo do ator Marco Nanini - o nosso eterno Lineu de A Grande Família -, um senhor de 70 anos, com alguns quilos a mais. Que é gay. Que mora sozinho. E que passa seu tempo assistindo a obras clássicas estreladas por Greta Garbo.
Pedro, o homossexual de Nanini, não é aquela gay luxuosa, histriônica ou afetada que nos acostumamos a ver em produções mundo afora - e que servem perfeitamente para a afeição (e para o palato) dos conservadores que costumam dizer que não tem nada contra, mas... né? Pedro toma decisões eticamente questionáveis, mora em um cubículo em permanente estado de penumbra, não tem o melhor gosto para se vestir. Fuma, bebe. É até excessivamente ranzinza em alguns momentos. O próprio Nanini em entrevistas afirmou que não é um personagem para ser amado: ele carrega uma dor provavelmente histórica, de quem nunca pôde, em toda a sua trajetória, viver a vida como gostaria de ter vivido. O que talvez explique seu hedonismo tardio. E sua metodologia, uma vez que converte o hospital público em que atua em um ambiente de luxúria, em que troca favores sexuais com figuras marginalizadas.
Aliás, é justamente quando sua melhor amiga Daniela (Denise Weinberg) chega ao hospital com um severo problema renal - ela tem poucos dias de vida -, que Pedro se vê em um impasse. Sem leito na ala feminina para abrigar uma pessoa trans, ele vê a oportunidade de alocar a amiga no setor dos pacientes homens quando um recém-chegado jovem baleado de nome Jean (Demick Lopes), praticamente implora para não ficar ali. A alternativa? Levar o rapaz para a sua casa, oportunizando à Daniela uma cama. Uma decisão estranha, excêntrica, especialmente pelo fato de Jean ter toda a pinta de ser alguém que está envolvido em crimes mais pesados. Oferecendo uma cama, comida, banho, curativos para os ferimentos, Pedro se aproximará de Jean, encontrando nele um fiapo de afeto e alguma dose de sexo. Uma amizade meio inesperada. Uma paixão que aplaca, de alguma forma, a solidão mútua.
Porque o filme, que está disponível na plataforma Mubi, é, no fim das contas, uma experiência única sobre a solidão na terceira idade. Que parece alcançar níveis quase insuportáveis para os gays, pobres, trabalhadores da periferia. Nanini encarna esse sujeito ordinário que é Pedro de forma convincente e comovente - ainda que a sua predição por Garbo soe eventualmente exagerada ou meio caricata. Apostando no hospital e no pequeno apartamento de Pedro como ambientes pequenos, úmidos, claustrofóbicos, Praça parece ampliar a sensação de sufocamento. Há um desconforto meio generalizado que vai da palavra meio entortada, passando pela nudez corajosa até chegar na beleza paradoxal - como no instante em que Daniela entoa o clássico Bate Coração, de Cecéu, que ficaria eternizada na voz de Elba Ramalho. É uma experiência nunca fácil, dolorosa, cheia de camadas e que vai fundo nos temas que pretende discutir. Mas sem perder a ternura.
Nota: 8,5
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