sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Picanha.doc - Fuga (Flee)

De: Jonas Poher Rasmussen. Com: não divulgado. Documentário / Drama / Animação, Suécia / Dinamarca / Noruega / França, 2021, 127 minutos.

[UPDATE: essa resenha foi escrita antes do início do ataque das tropas russas à Ucrânia, num contexto que provocará um novo movimento de fuga de refugiados. Aliás, a ONU acredita que 4 milhões de civis poderão deixar o País nas próximas semanas. Infelizmente o horror continua.]

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Revoltante. Comovente. Perturbador. Sombrio. Definir com adjetivos uma obra completa e complexa como Fuga (Flee) não é tarefa fácil. Esse é um filme que me fez chorar em mais de um momento, por motivos os mais variados. Ainda que nos deixe de estômago embrulhado é uma experiência necessária em tempos em que o tema "crise de refugiados" segue em alta. Aliás, ainda está viva em nossa memória recente as cenas em que milhares de afegãos perseguem aviões militares dos Estados Unidos para tentar, como uma última medida desesperada, fugir junto com eles. São imagens que já estão na história. E que seguem contando a dolorosa e complicada trajetória política, social, cultural e religiosa do País asiático, que parece conviver há algumas décadas com um estado de guerra permanente - com as influências de Rússia e Estados Unidos servindo muito mais para estremecer os ânimos do que para prestar algum tipo de socorro efetivamente humanitário. Isso sem falar no Talibã, o movimento fundamentalista que atualmente detém o poder no País, sendo uma ameaça permanente.

Por tudo isso o Afeganistão é tido como o País mais perigoso do mundo - e o que mais "produz" refugiados e solicitantes de asilo. E aqui a gente já tem um ponto importantíssimo que, em muitos casos, gera confusão: nunca devemos confundir aqueles que estão em fuga de um País com aqueles que estão promovendo o terror no local. Parece meio óbvio, mas não é porque um homem vem da Palestina que ele será, necessariamente, um homem-bomba em potencial. Ele pode ser só alguém querendo fugir de uma nação em que o fundamentalismo impera. E talvez seja por isso que uma das cenas mais desoladoras de Fuga envolva uma pequena embarcação que está em fuga tentando chegar à Suécia - por meio do Mar Báltico - e se depara com um enorme navio de turistas cheio de pessoas loiras, ricas, bonitas. São instantes de tensão e de suspense em que aquelas pessoas apenas clamam por uma salvação. Uma alternativa. Alguma coisa qualquer que não seja ter de retornar ao Afeganistão. Ou à Rússia. É chocante. Desesperador. 


Na real em linhas gerais é meio inconcebível pensar que estamos em um mundo em que esse tipo de barbárie ocorra. Em que violência, sangue, tortura e morte resulte de uma necessidade de se aniquilar o diferente. Em que pessoas movidas por ódio, por intolerância, por preconceitos os mais diversos apenas desejam que o outro deixe de existir. E eu estou aqui escrevendo essa resenha e despejando essas palavras meio sem pensar e ainda nem falei do filme em si e da história que ele conta. E de como Fuga se tornou a primeira obra da história a ser nominada ao Oscar nas categorias Documentário, Animação e Filme em Língua Estrangeira (é o enviado da Dinamarca). A trama narra a história real de um intelectual (sem nome fictício é Amin Nawabi), que faz um relato comovente ao diretor Jonas Poher Rasmussen sobre como tenta recomeçar a sua vida na Europa após conseguir, a muito custo, fugir do Afeganistão. Para se tornar, inicialmente, uma "não pessoa" - sem família, sem passado, sem documentos.

O filme mescla documentário e a animação como uma opção, até mesmo para preservar a identidade do protagonista, que até hoje vive na Dinamarca. Isso não impede que detalhes de sua vida íntima sejam revelados, como o fato de ser gay em um País absurdamente conservador e radical também no que diz respeito a esses temas. E não deixa de ser curioso notar como será justamente a sexualidade de Amin - e a sua busca permanente (e incerta) pelo amor - que o humanizará ainda mais (e não é por acaso que soem tão agradáveis a nós os comentários do protagonista sobre os filmes do Van Damme ou mesmo uma rara entrada em uma boate, numa daquelas sequências que nos fazem rir e chorar ao mesmo tempo). E que mostrarão que a vida pode ser tão simples. Tão bela. O que queremos, o que desejamos. Longe do ambiente acinzentado e arenoso do contexto de fuga, recriado na animação como uma espécie de borrão macabro na mente de Amin. É uma experiência rara, complexa, atual. E que precisa chegar ao maior número de pessoas possível. Na realidade me faltam até palavras. Resta apenas a opção de ver. E de torcer para que a visibilidade possibilitada pelo Oscar possa render bons frutos.

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