quarta-feira, 29 de julho de 2020

Tesouros Cinéfilos - First Cow (First Cow)

De: Kelly Reichardt. Com John Magaro, Orion Lee, Toby Jones e Scott Shepherd. Drama, EUA, 2020, 121 minutos.

Sensibilidade. Sutileza. Uma fluência narrativa eventualmente lenta, quase evocativa. Eventos que se descortinam sem pressa num filme que diz bastante, mas sem mostrar muito. Um certo bucolismo selvagem. Uma história sobre amizade, empreendedorismo e... gastronomia. Assim é First Cow (First Cow), mais recente trabalho da veterana diretora Kelly Reichardt (de Certas Mulheres) e uma das boas surpresas dessa temporada pouco convencional de cinema. Não é uma obra muito fácil de resumir porque a sua complexidade está nas detalhes, nas nuances, naquilo que nem sempre é dito de forma escancarada. E, confesso, gosto muito de filmes assim! A trama volta 200 anos no tempo para o interior do Estado do Oregon, período em que um grupo de caçadores de peles contrata o cozinheiro Cookie Figowitz (John Magaro) para acompanhá-lo em uma expedição em uma mata fechada.

No meio da viagem ele encontra, por acaso, o chinês King-Lu (Orion Lee), que afirma estar fugindo de um grupo de russos que deseja vingança. Após viabilizar a sua fuga, eles se reencontram próximo a um povoado, dando início a uma amizade que, mais tarde, virará "parceria de negócios". Tudo vai acontecendo, pra falar a verdade, de forma meio inesperada e bastante naturalista, especialmente depois de a dupla se estabelecer e passar a morar junta numa casa meio improvisada, afastada da comunidade. Num certo dia, Cookie enxerga uma vaca pastejando nos arredores - ela é de propriedade de um certo Chief Factor (Toby Jones), um aristocrata local, o primeiro animal a chegar ali. E será unindo o faro para empreender de King-Lu, com as suas habilidades na cozinha, que a dupla passará a, sistematicamente, roubar leite da vaca de Chief, que servirá de matéria-prima para a produção de bolinhos "de chuva" que serão vendidos no comércio local.


A iguaria se torna, imediatamente, um sucesso, sendo quase disputada a tapa pelos aldeões. Só que para produzir o alimento é necessário leite. Todos os dias. O que faz com que se torne rotina a ordenha escondida da vaca de Chief - sempre à noite, com uma metodologia que visa a minimizar os riscos. Bom, vocês sabem: não teríamos um filme se a dupla seguisse com os seus planos de enriquecer, mudar para um grande centro e até construir um hotel com restaurante acoplado, tudo com leite roubado. Em algum momento a coisa vai degringolar. E a condução da narrativa para a forma como as coisas acontecem é não menos do que saborosa: a gente sente que algo está prestes a dar errado. Mas não deixa de torcer para a carismática dupla - no fim das contas dois sujeitos de grande sensibilidade, levemente desajustados e que, num mundo em que a ordem do dia é a brutalidade, se esforçam para sobreviver. Tentando enxergar beleza, inclusive, onde não há.

E, nesse sentido, o filme é um verdadeiro primor, ao nos presentear com uma série de sequências doces, que se alternam com outras mais duras (aliás, preste bastante atenção à primeira meia hora da película). A "descoberta" da vaca, por exemplo, tem um caráter meio mágico, como se Cookie estivesse diante de um ser elevado, quase celestial - o que o seu sorriso não deixa de transparecer. O estilo de filmagem da diretora também é elegante, cheio de travellings e de planos-sequência em que as coisas vão ocorrendo, com a câmera "flanando" em meio aos acontecimentos. E o que falar da trilha sonora, que mistura notas, melodias e arranjos tão doces quanto caóticos, formando um contraste entre a natureza selvagem e a violência do próprio ser humano? Trata-se, ao final, de uma obra nunca óbvia, extremamente envolvente, com uma dupla de protagonistas encantadora e que ainda presta uma homenagem ao poder da gastronomia (as pessoas sempre precisarão comer, né?). Vale demais!

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