De: Luis Buñuel. Com Fernando Rey, Delphine Seyrig, Stéphane Audran, Paul Frankeur, Bulle Ogier e Jean-Pierre Cassel. Comédia / Fantasia, França, 1972, 102 minutos.
Uma verdadeira coleção de sequências excêntricas, oníricas, esdrúxulas que, de alguma forma, evidenciam a mesquinharia, a futilidade e até mesmo a estupidez das classes mais abastadas. É isso que, ao menos em partes, acompanhamos no clássico O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de La Bourgeoise), filme do espanhol Luis Buñuel, que completa 50 anos de lançamento em 2022. Aliás, quem acompanha a carreira do realizador - que dirigiu outras obras-primas como Viridiana (1961) e O Anjo Exterminador (1962) - sabe que esse tipo de expediente seria repetido muitas vezes em sua obra. Em seus filmes não faria concessões ao criticar o vazio existencial do ambiente aristocrático que, unido à Igreja Católica e aos arroubos militares, não hesitaria em manter o status quo. O que talvez explique a persistência de Don Rafael Acosta (Fernando Rey) em se autoafirmar como um não reacionário - ainda que não titubeie em simplesmente abrir fogo contra uma jovem que ele acredita ser uma terrorista.
Don Rafael se comporta, como muitas vezes se comporta essa suposta ala pseudo-progressista que trafega nas altas rodas. Defende uma coisa, mas faz outra. Na Europa, é um diplomata que representa uma nação fictícia da América do Sul - chamada apenas de Miranda. Moralista, nacionalista, usa seu diálogo empolado, cheio de afetações para seguir com o seu idílio burguês em seu mundinho à parte - ainda que, nos bastidores, negocie grandes cargas de cocaína com gente igualmente grande. Don Rafael, ao cabo, encarna o homem branco médio que se impacta com as revoluções - e nunca é demais lembrar que os anos 70 recém começavam -, que quer limpar o País da corrupção. Mas que, refestelado em lautas refeições, em roupas chiques, em lençóis de seda e em bebidas elegantes, se enclausura em um universo em que acredita na impunidade dos detentores do poder, de quem faz a economia girar ou de quem se corrompe porque, enfim, é um mal necessário. E talvez não seja por acaso que, em certa altura, ele comente que "a solução para a fome e a pobreza está nas mãos do exército".
Aliás, nesse sentido, não é demais lembrar que as tropas do exército e também a Igreja, claro, andam de mãos dadas com o coletivo de homens e mulheres ricos que andam pra lá e pra cá procurando apenas por uma boa refeição - essa verdadeira marca das classes favorecidas, que se alimentam no Coco Bambu só pra fazer de conta que tem bom gosto. Aliás, o fio condutor é apenas esse: um grupo de pessoas bem de vida tentando jantar. Ou almoçar. Sendo interrompidas por eventos aleatórios, surrealistas, pitorescos. Em um deles é o próprio comando do exército - capitaneado pelo exótico coronel vivido por Claude Piéplu -, que "invade" a casa e Henri (Jean-Pierre Cassell) e de Alice (Stéphane Audran) com tropa e tudo para mais uma interrupção. A desculpa? Algumas manobras militares estão sendo feitas nas redondezas. Tudo é preparado para receber de improviso esses homens de bem, que defendem a Pátria. E que saem sem mais nem menos da mesma forma que chegaram.
Em certa altura do filme é quase impossível não achar tudo estranho, bizarro extravagante. É aquele tipo de obra que, toda vez que revisitamos encontramos um sentido novo, um significado secreto, algo que está nas entrelinhas. Há na cena em que o coronel devolve o convite para um jantar, um apelo a metalinguagem, em que sonho e realidade se mesclam, enquanto os protagonistas se veem, de forma inesperada, sem saber como agir diante de uma plateia. Eles não estudaram aquelas falas. Não sabiam como se portar. Algo saiu do prumo de suas vidinhas luxuosas e ordinárias. Perdeu-se o controle. O controle que eles tinham, por exemplo, na sequência em que humilham um motorista que é empregado de um deles apenas por esporte, convidando-o para sorver um dry martini em sua companhia, apenas para depois constatar que o sujeito de modos simples não sabe tomar aquela bebida (como se houvesse alguma lógica superior, alguma etiqueta inevitável no ato de virar um copo em direção à boca).
É assim que Buñuel converte O Discreto Charme da Burguesia em uma obra completa e complexa, sarcástica e delirante. Um jantar como um objetivo, que é interrompido até por um funeral inesperado. As idas e vindas, as caminhadas persistentes no meio do nada. O sexo improvisado - como exemplo do hedonismo meio torpe. Um bispo que se apresenta em uma propriedade para trabalhar como jardineiro e que passa a conviver com todos ali - a onipresença da Igreja -, para se deparar com a inesperada violência mais adiante. São tantas camadas, tantos episódios, tantos comentários políticos, sociais, culturais, ideológicos, filosóficos e religiosos nas entrelinhas, que seria praticamente impossível não conceder o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira a esse clássico tão atemporal. Aliás, até na hora de receber a distinção, Buñuel brincou, bem ao seu estilo: "É claro, já paguei os US$ 25 mil dólares que eles queriam para me conceder o prêmio. Eles podem ter até seus pontos fracos, mas não costumam quebrar promessas".
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