terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Picanha.doc - Summer of Soul ...ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada (Summer of Soul)

De: Ahmir Khalib Thompson. Documentário / Musical, EUA, 2021, 117 minutos.

Em uma das tantas passagens marcantes do vigoroso documentário Summer of Soul ...ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada (Summer of Soul) a jornalista Charlayne Hunter-Gault dá um poderoso depoimento a respeito da importância não apenas da música, mas de artistas como a Nina Simone em sua vida. Primeira estudante afro-americana a frequentar a Universidade da Georgia, ainda no começo dos anos 60, Charlyane se viu obrigada por acadêmicos brancos da época - incapazes de aceitar a presença de negros no Ensino Superior -, a uma espécie de existência segregada. Assim, enquanto ela vivia isolada no porão do dormitório destinado aos estudantes, todos os demais moravam no andar de cima. E, como forma de provocá-la por simplesmente ousar estar entre eles (esses seres privilegiados, bem nascidos e ricos), os alunos brancos faziam todo o tipo de barulho que pudesse atrapalhar a residente do andar de baixo. A solução encontrada por Charlyane? Colocar os fones de ouvido para escutar Nina Simone.

Sim, ouvir música enquanto algum barulho externo atrapalha, pode ser apenas uma atitude prosaica. Mas, não nesse caso já que, aqui, esta foi a alternativa encontrada pela acadêmica de jornalismo para tentar afastar o racismo que se avizinhava. O preconceito que persistia em entrar pelas frestas, ecoado por essa massa difusa e alienada que, até os dias de hoje, acredita ter direitos a mais do que certas minorias apenas pela cor de sua pele. E o fato de ouvir Nina Simone, essa grande diva do jazz, tem um peso a mais, já que a artista era uma das maiores representantes da música como veículo de luta pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos. Algo que ela expressava não apenas com a sua poderosa voz, mas também com gestos, com movimentos, com comportamentos, com figurinos que a convertiam em uma entidade quase mística, quase como uma divindade africana. Alguém, enfim, que utilizava sua arte para questionar o status quo, para provocar reflexões, para consolidar ideais políticos, numa mistura de luta e de esperança que costuma mover a comunidade afro até os dias de hoje.


Nina, assim como tantos outros cantores e compositores, foi uma das escaladas para a programação do Harlem Cultural Festival, evento que reuniu quase 300 mil pessoas - a grande maioria negros e hispânicos - em seis finais de semana em Nova York, no verão de 1969 (sim, no mesmo ano do badalado Festival de Woodstock). Em uma década marcada por um verdadeiro turbilhão político, social e cultural nos Estados Unidos, o encontro promoveu o orgulho e a união através da música, em uma celebração que ficaria "engavetada" até, praticamente, os dias de hoje. Rico em imagens de arquivo, o documentário resgata não apenas as apresentações que ocorreram no período - de artistas de renome como Stevie Wonder, Sly & The Family Stone, Mahalia Jackson, The 5th Dimension e The Chambers Brothers, entre outros -, mas o significado do festival em si, que ecoava em suas vozes, em sua poesia, um verdadeiro manifesto cultural pela liberdade e por direitos.

Com entrevistas com participantes, com artistas, com jornalistas, ativistas e outros envolvidos o diretor Ahmir Khalib Thompson - o Questlove da banda The Roots -, reconstrói, a partir de imagens feitas por Hal Tulchin, o panorama do período, o clima vivido à época, em meio a assassinatos de lideranças negras (como Malcolm X e Martin Luther King), perseguições a coletivos como o Panteras Negras, explosão do movimento hippie, presença do homem na Lua e outros. Trata-se de uma obra vibrante, colorida, primaveril, dançante e que nos leva da melancolia ao gracejo em segundos, em meio as histórias que vão se descortinando de forma dinâmica, envolvente. "O poder da música é o de contarmos as nossas próprias histórias", comenta em certa altura da projeção o ator e dramaturgo Lin-Manuel Miranda, um dos convidados. É exatamente esse o sentimento que move todos ali - como se expiassem suas dores, anseios, desejos em meio aos acordes de jazz, de gospel, de soul. Pode anotar no Bolão do Oscar: deve ser um dos lembrados em sua categoria.


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