terça-feira, 3 de setembro de 2019

Tesouros Cinéfilos - Dor e Glória (Dolor y Gloria)

De: Pedro Almodóvar. Com Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Penélope Cruz e Leonardo Sbaraglia. Drama, Espanha, 2019, 103 minutos.

Vamos dizer que Dor e Glória (Dolor y Gloria) talvez seja um filme muito mais bonito do que profundo. Mais sensível, mais leve. Menos impactante ou provocativo - como eventualmente ocorre na carreira de Pedro Almodóvar. Mas isso não é nenhum demérito. Olhar com carinho para o passado, fazer um filme com ares autobiográficos, que homenageia o cinema e outras artes, também é afagar o espectador. De vez em quando a gente quer uma película que nos envolva, sem necessariamente nos intrigar de maneira comovente. E esta obra parece fazer isso sem forçar a barra, na base da gentileza, da graça. Continua sendo um legítimo Almodóvar - estão lá o uso de cores vivas e a fotografia saturada, Antonio Banderas e Penélope Cruz interpretando, um roteiro com algum grau de mistério cheio de idas e vindas e, claro, as paixões que não olham cor, gênero, tipo físico ou idade. O tipo de obra perfumada pela experiência, talvez. E que por isso tão bela, tão introspectiva.

Na trama, Banderas é Salvador, um decadente diretor de cinema cheio de ideias nunca postas em prática que seguem guardadas em seu computador e que, agora, a convite da cinemateca espanhola, revisitará uma de suas primeiras obras, de nome Sabor, que está para completar 30 anos de seu lançamento. Viajar até o passado para reencontrar esse filme, também será confrontar com um antigo ator que trabalhou com ele em tal película e que, por ter modificado completamente a personalidade do personagem que Salvador havia escrito, se tornou seu desafeto. O ator em questão é Alberto Crespo (Asier Etxeandia), sujeito recluso, intenso usuário de drogas e que anda afastado do mundo das artes. Do reencontro entre ambos os homens surge uma curiosa amizade. E também uma oportunidade para que Alberto "renasça": ele se convida para levar aos palcos uma das tantas ideias deixadas de lado por Salvador em seu notebook - uma peça que lhe comove profundamente.


Muito mais do que homenagear o meio em que vivem estes homens, Dor e Glória também é uma ode ao passado, às escolhas que fazemos e sobre como elas definem quem seremos no futuro. Com  muitas idas e vindas no tempo, conheceremos um Salvador ainda menino (o ótimo Asier Flores), sua relação com a mãe Jacinta (Penelope Cruz) e seu esforço na direção transformadora do aprendizado - sendo particularmente comovente o instante em que o garoto de apenas oito anos passa a ser o professor de Albanil (César Vicente), pintor e instalador que trabalha na "casa" do jovem - e que lhe permitirá descobrir a homossexualidade. Nas sequências que mostram Salvador adulto, vemos um sujeito fragilizado, adoecido e hipocondríaco, que esconde suas vivências em textos nunca revelados, mas que tem uma grata surpresa quando reaparece um antigo amigo/namorado do passado, um certo Federico (Leonardo Sbaraglia). Aliás, difícil não se emocionar com a sequência em que ambos contracenam: uma cena profunda, dolorosa, comovente. Ainda que eventualmente otimista, à sua maneira.

Em linhas gerais o filme não possuirá uma reviravolta ou algum tipo de arco dramático bem estruturado entre começo meio e fim. Alberto levará a peça aos palcos, Salvador recordará do passado. Confrontará este mesmo passado no presente. Perdoará, mais de uma vez. Seguirá adiante, curando as feridas não apenas da alma, mas também físicas. Mestre em utilizar gráficos, montagens e outras trucagens visuais em seus filmes, Almodóvar transforma a sequência em que Salvador fala de todos os males que lhe afligem em um curioso tour de force das dores do mundo - o que se desenvolve de maneira curiosamente divertida. Assim como é divertida a "descoberta" tardia da heroína, como uma alternativa para aplacar essas mesmas dores vividas pelo protagonista. Em uma obra que utiliza as cores não com um propósito específico, mas para salientar a importância delas nas artes, na vida, no redescobrir do mundo, o que fica docruzamento entre passado e presente são as experiências, afinal. E, assim como um belo desenho impregnado em nossa memória, elas jamais podem ser apagadas.

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