terça-feira, 14 de setembro de 2021

Tesouros Cinéfilos - Carne Trêmula (Carne Trémula)

De: Pedro Almodóvar. Com Liberto Rabal, Francesca Neri, Javier Bardem, Penélope Cruz e Pepe Sancho. Suspense / Drama, Espanha, 1998, 98 minutos.

Não é tarefa fácil apontar o ápice do estilo bastante gráfico e um tanto quixotesco da obra de Pedro Almodóvar. Mas eu afirmaria sem medo de errar que o clássico moderno Carne Trêmula (Carne Trémula) é um dos candidatos a esse título "simbólico". Nessa história novelesca, afinal, encontramos uma série de elementos que marcam a filmografia do espanhol. Pra começar há um romance meio torto, de ares quase patológicos, que vai avançar para algum tipo de violência inesperada (mas nem tanto assim). Aliás, a tragédia humana, bem como suas coincidências desastrosas também é uma das marcas do realizador. Há uma sensualidade latente, que se sobressai em cada frame que, não necessariamente, precisa ser sexual. A profusão de cores, com a prevalência do vermelho, quase sempre transformam a fotografia em um elemento de ambiguidade, que faz a narrativa trafegar no limite entre a paixão intensa e morte iminente. E há por fim as figuras humanas demasiado humanas - que sorriem, choram, sofrem, amam, sentem medo, frustração e dor. Tudo ao mesmo tempo.

E há, como de praxe, o elenco irretocável que confere a tudo uma aura quase mágica. Na trama a gente volta no tempo, para o começo dos anos 70 num contexto em que os muros pichados e as reivindicações televisionadas dão conta dos reflexos da ditadura promovida pelo General Franco. Em meio as tensões é que a prostituta Isabel (Penélope Cruz) dá à luz o pequeno Victor (Liberto Rabal) - o parto ocorre em um ônibus em movimento, em mais uma daquelas sequências com um toque Almodóvar. O filme avança 20 anos no tempo para a Madri dos anos 90. Victor, agora, é um entregador de pizza que se vê apaixonado pela jovem descompromissada Elena (a bela Francesa Neri), que não quer nada com ele. Uma confusão no apartamento da moça resulta em um chamado à polícia, o que faz com que os agentes David (Javier Bardem) e Sancho (Pepe Sancho) sejam destacados para investigar. A ação resulta em tragédia: um tiro acidental torna David paraplégico. Já Victor amargará sete anos na cadeia.


E nesse tempo em que se mantém preso Victor acompanha à distância os acontecimentos que levam David a uma vida feliz - mesmo na condição de cadeirante, conseguiu se casar com Elena e ainda se tornou uma estrela da modalidade de basquete em cadeira de rodas (com direito a medalha olímpica nos jogos de Barcelona 92). A ideia do rapaz é se vingar e, bom, talvez seja melhor nem avançar demais na narrativa que reserva ótimas surpresas e reviravoltas tão desconfortáveis quanto inesperadas. Apostando no estilo novelesco - a obra é adaptada de um romance escrito por Ruth Rendel -, Almodóvar nos conduz por uma Madri em permanente construção em que a casa distopicamente destruída herdade por Victor de sua falecida mãe, contrasta com a construção de prédios em cores vivas do entorno. A metáfora parece óbvia: é hora de juntar os cacos. Mas será possível? O método escolhido não poderá resultar em uma trilha em que tudo (e todos) sairá ainda mais devastado?

Nesse sentido, o diretor não nos poupa de apresentar uma série de figuras ressentidas, desejosas de vingança e que buscam a redenção de uma forma bastante torta. Aliás, é quase difícil se afeiçoar de qualquer um que acompanhamos - todas figuras complexas, ambíguas, que possuem uma moral duvidosa, que dificilmente reconhece seus erros. Ao desejar tanto algum tipo de desforra, a situação se tornará insustentável - ainda mais quando, como parte do plano, Victor se aproximará de Clara (Ángela Molina), mulher do temperamental Sancho. É uma trama engenhosa, tensa, cheia de idas e vindas, que conta com uma trilha sonora envolvente (repleta de canções típicas espanholas), com tomadas de câmera inesperadas (a que nos leva ao ônibus no começo da obra é espetacular) e uma fotografia, como já dito, de cores vivas, quase saturadas. O resultado é um dos grandes filmes de Almodóvar que, não por acaso, pavimentaria o caminho para Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e Fale com Ela (2002), duas de suas maiores obras.

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