segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Cinema - A Odisseia dos Tontos (La Odisea de Los Giles)

De: Sebastian Borenzstein. Com Ricardo Darín, Luis Brandoni, Chino Darín e Verónica Llínás. Comédia dramática, Argentina / Espanha, 2019, 116 minutos.

A terrível crise institucional e econômica da Argentina no começo desse século é o pano de fundo para essa inacreditável história, desenvolvida com humor, ação e ternura em igual medida. O ano é 2001. O presidente Fernando De La Rua vê a competitividade do País diminuir no cenário internacional e o déficit fiscal aumentar cronicamente. Inflação galopante, taxa de desemprego em absurdos 25% da população ativa, queda no valor do salário mínimo, congelamento das contas bancárias... um cenário caótico que só se modificaria profundamente com a chegada ao poder do presidente peronista Nestor Kirchner, em 2003 que, com uma reestruturação profunda, recolocaria os hermanos nos eixos. Esse pequeno contexto é importante para uma melhor compreensão daquilo que assistimos em A Odisseia dos Tontos (La Odisea de Los Giles), novo filme do diretor Sebastian Borenzstein (do ótimo Um Conto Chinês) e que é baseado no livro La Noche da La Usina de Eduardo Sacheri.

Mas ainda que haja um pano de fundo "político", a obra não levanta uma bandeira para ficar esfregando-a na cara do espectador durante as duas horas de filme. Uma ou outra cena de protesto aqui, uma certa melancolia letárgica da classe média acolá, mas o que o filme pretende é divertir o público com uma história de "ladrão roubando ladrão" - e que nos faz torcer MUITO pelo improvável coletivo de protagonistas. A trama nos joga para a Argentina rural, numa província aparentemente distante de Buenos Aires, onde um certo Fermín Pelassi (Ricardo Darín, sempre ele) está disposto a juntar dinheiro para comprar uma propriedade abandonada, em que havia produção de grãos (antes da crise), para montar uma cooperativa. O plano se encaminha bem quando ele arranja uma série de distintos sócios - entre eles o anarquista Antônio (o sempre competente Luis Brandoni) - e junta grande parte do dinheiro necessário para o investimento.


O problema é quando ele coloca o dinheiro no banco um dia antes do confisco das contas bancárias. Resultado: os R$ 158 mil dólares depositados não podem ser mexidos até segunda ordem. E o pior, Fermín, Antônio e os demais descobrirão mais tarde, que o dinheiro foi destinado, antes do estouro da crise, para um rico empresário que, agora, está com ele. Todo o dinheiro físico. Nota sobre nota. Não apenas deles. Mas de muitos outros clientes do mesmo banco. É a partir daí que o grupo arma um excêntrico plano em que tentará reaver a grana que, afinal, era deles. Pessoas tentando roubar o que, no fim das contas, lhes pertence. E é nesse absurdo de assistir figuras absolutamente comuns tentando se organizar para um roubo hollywoodiano - uma espécie de 11 Homens e Um Segredo dos pampas (com direto a um curral com vacas no caminho) - que a película te ganha. Em meio a frustrações, anseios, sonhos e desejos por um futuro melhor, um crime está a caminho. Mas afinal de contas, quem é o verdadeiro criminoso? O verdadeiro vilão?

Como um filme que traça um painel histórico e político da Argentina recente, a obra - a enviada pelo País para a próxima edição do Oscar - não deixa de ser uma bela cutucada na política praticada por Maurício Macri (e que repete erros ocorridos naquele período). "Os filhos da puta não se sentem filhos da puta. Eles não acordam e pensam 'mas olha que filhos da puta que nós somos'. Isso é para tontos como nós", divaga Fermín a certa altura, como que resumindo o contexto em que pobres se ferram (e se tornam cada vez mais pobres) e ricos ficam cada vez mais ricos, praticando todo o tipo de engambelação. Não é por acaso que o nosso sentimento é de regozijo, enquanto assistimos aqueles homens brutos, trabalhadores, sem escolaridade, se organizando para "enfrentar" o sistema. Neles nos vemos espelhados, como vemos os assaltantes de La Casa de Papel, por exemplo. Se o sistema é bruto, a reação deve ser em igual medida. Aliás, vale para nós, brasileiros, que assistimos prostrados, catatônicos, os despautérios da família Bolsonaro.


Com um ótimo elenco, o filme trata com carinho seus personagens, apresentados com calma, de forma fluída, sendo impossível não se "apaixonar" pela devotada esposa de Fermín, Lídia (Verónica Llinás, que certamente seria nominada a um Oscar de Atriz Coadjuvente se este fosse um filme de Hollywood). Como curiosidade, o filme também tem a estreia de Chino Darín - o filho de Ricardo - que faz o filho dele. E não é por acaso que as interações mais comoventes entre eles, provoquem tantas lágrimas. Mas esse não é um filme triste. Na verdade é um filme divertido, alegre, otimista, com os tontos (ou os oprimidos) dando a volta por cima. Cheio de ótimas piadas e profundas divagações existencialistas sobre o absurdo na nossa "pequenez" nesse mundo (e a película já inicia com uma dessas, que te arrebata de saída). Com ótima trilha sonora - que vai de Danúbio Azul do Strauss a bandas de rock argentino dos anos 90 - o filme ainda tem ótimo desenho de produção e excelente construção de personagens, muitos deles com perfil político distinto, e características particulares, o que rende boas risadas.

Nota: 8,5

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