terça-feira, 19 de abril de 2022

Pérolas da Netflix - O Patrão: Radiografia de Um Crime (El Patrón, Radiografía de un Crimen)

De: Sebastián Schindel. Com Joaquin Furriel, Luis Ziembrowski, Guillermo Pfening e Mónica Lairana. Drama, Argentina / Venezuela, 2014, 99 minutos.

Quem assistiu e gostou do nacional 7 Prisioneiros (2021) vai encontrar em O Patrão: Radiografia de Um Crime (El Patrón, Radiografía de un Crimen) uma experiência semelhante sobre condições de trabalho degradantes e decisões extremas movidas pela violência. Se no filme brasileiro tínhamos o ambiente acinzentado de um ferro-velho como cenário - um espaço insalubre, sujo -, aqui temos um açougue como microcosmo, o que permite uma série de metáforas bastante gráficas que envolvem o manuseio de carnes de procedência duvidosa (pra não dizer podres mesmo). Na trama, o peão interiorano Hermógenes (Joaquin Furriel) encontra emprego numa rede de açougues de Buenos Aires. Semi-analfabeto e sem muito conhecimento sobre direitos e deveres envolvendo esse universo, o protagonista se sujeita a uma série de pressões e extorsões vindas de seu chefe, um certo Don Latuada (Luis Ziembrowski), que age na base da coerção com seus funcionários, quase no limite do comportamento miliciano.

Ocorre que no decorrer da narrativa não demoramos a saber que ocorreu um crime envolvendo os dois homens - com a trama derivando para uma espécie de drama de tribunal a respeito de injustiças relacionadas ao trabalho análogo à escravidão e a ineficiência do Estado na hora de analisar casos como esse. Interessado no caso, o advogado humanista Marcelo Di Giovanni (Guillermo Pfening) passará a investigar os motivos que teriam levado Hermógenes a assassinar o próprio chefe tentando, assim, atenuar sua pena. Voltando no tempo, também descobriremos detalhes da relação conturbada, que levariam o sujeito ao limite da tolerância - o que envolvia maus tratos também a sua esposa Gladys (Mónica Lairana), que passará a trabalhar como doméstica na residência de Latuada. O que ampliará a sensação de degradação já que, por não ter condições financeiras, o casal passará a habitar os fundos do açougue em que trabalham - um espaço pequeno, pouco higiênico, sem ventilação alguma.


Hábil na construção desse cenário um tanto caótico, o diretor Sebastian Schindel (do recente Crimes em Família, 2020) converte o diminuto local do açougue em um ambiente que beira a claustrofobia - sensação ampliada pelo hábito do patrão de receber carne deteriorada, aplicando na matéria-prima uma série de ingredientes e de produtos químicos (inclusive água sanitária) como forma de revitaliza-la para utilização em bifes empanados ou em carnes moídas. Não demora para que os clientes reajam e que a Vigilância Sanitária feche o local, o que só piora tudo, com Latuada cobrando do empregado não apenas os valores relativos a prejuízos financeiros, mas mantendo-o assim preso, enjaulado nesse contexto geral de precariedade. A presença de um açougueiro mais experiente, de nome Armando (German de Silva), não ajuda muito, já que é ele que ensina a Hermógenes as maracutaias do setor, o que naturaliza o processo como algo que, bom, enfim, acontece.

Baseado em fatos reais, o filme tem como grande destaque as atuações, e Furriel está tão bem na pele de Hermógenes que é quase difícil separa-lo do personagem, numa caracterização naturalista e absurdamente convincente (e se alguém me dissesse que se tratava mesmo de um empregado de açougue e não de um ator eu não hesitaria em acreditar). Tecnicamente bem executada, a obra também se utiliza da própria cenografia para uma série de rimas visuais, com a podridão sendo literalmente evidenciada a partir da carne recebida que parece, a cada dia, mais fétida, mais estragada, mais decomposta, numa alegoria perfeita para tudo o que se encontra naquele local em matéria de maus tratos e condições sub-humanas de sobrevivência. É uma experiência difícil, amarga, dolorida, quase para estômagos mais fortes. Mas quem se aventurar pela narrativa encontrará uma experiência que discute exploração no trabalho, contrastes sociais, pressões psicológicas, relações de dependência e, claro, os limites que levam o oprimido a reagir com brutalidade às violências impostas pelo opressor. Em tempos em que direitos trabalhistas e o sonho do retorno à escravidão parecem mover parte da elite, não é demais lembrar ao trabalhador a importância de lutar por aquilo que lhe pertence.


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