terça-feira, 19 de outubro de 2021

Cinema - O Homem Que Vendeu Sua Pele (L'Homme Qui a Vendu Sa Peau)

De: Kaouther Ben Hani. Com Yahya Mahayni, Dea Liane, Koen De Bouw e Monica Bellucci. Drama, Tunísia, 2020, 104 minutos.

Quais os limites do uso do corpo como meio de expressão artística? Quais as barreiras éticas ou morais que podem resultar desse tipo de performance? Uma manifestação materializada na pele - seja ela um desenho, uma pintura, uma frase ou algum outro experimento -, é capaz de converter um ser vivo (bem como seus tecidos, seus órgãos e tudo aquilo que ele carrega) em uma simples "mercadoria"? Pronta para o consumo de excêntricos apreciadores de arte contemporânea? E, mais do que isso: afinal e contas, qual o conceito de arte? Bom, todas essas são questões nem sempre fáceis de se responder, nos acompanham durante toda a projeção de O Homem Que Vendeu Sua Pele (L'Homme Qui a Vendu Sa Peau), filme dirigido por Kaouther Ben Hani, que concorreu ao Oscar pela Tunísia na mais recente edição e que, agora, está em cartaz nas salas do País.

Uma das artistas performáticas mais instigantes da atualidade, a sérvia Marina Abramovic afirmou certa vez que "arte não é apenas uma outra obra bonita que combine com o chão de sua sala de jantar. A arte tem que ser perturbadora, questionadora". E é exatamente essa a lógica do artista contemporâneo Jeffrei Godefroi (Koen De Bouw). Quando ele conhece o refugiado sírio Sam Ali (Yahya Mahayni), que trocou seu País de origem pelo Líbano para escapar da guerra, faz a ele uma proposta inusitada: oferecer um contrato que lhe permita viajar pela Europa em liberdade, tendo como contrapartida o acesso as suas costas, local onde ele realizará uma provocativa pintura/tatuagem. Assim, convertendo o corpo em agente poético central, denunciará o absurdo da crise dos refugiados, da xenofobia, do ódio e do preconceito na modernidade. O preço não parece ser alto. Mas será mesmo?

O caso é que Sam Ali é um sujeito de grande sensibilidade e um tanto impulsivo que, em um ato impensado, propôs uma espécie de "revolução" dentro de um trem, na Síria. A revolução no caso foi pedir a bela Abeer (Dea Liane) em casamento, o que foi celebrado com música, com festa, com alegria. Mas por pouco tempo. Preso, o protagonista teve de perpetrar uma fuga sufocante, em meio a um governo que não hesitaria em aniquilar inimigos políticos. Pior do que isso: viu Abeer se envolver em um casamento arranjado - o que pra ela também significaria liberdade -, com um ricaço qualquer que lhe leva a Bruxelas, capital da Bélgica. O sonho de Sam Ali oferecendo suas costas, seu corpo para a arte de Godefroi? Fazer uma parada na própria Bélgica em meio a turnê europeia. Sim, como produto artístico ele teria trânsito livre entre os países do Velho Mundo. O que seria diferente se ele fosse apenas, ironia das ironias, o seu próprio corpo. Sem nada. Sem intertexto. Sem metáfora. Sem consumo.

Nesse sentido, em alguma medida, confesso que a banalidade do meio artístico - cheio de afetações e de eventos que reúnem uma burguesia tosca e elitizada, que vê apenas na discussão pela discussão a contemplação de um certo caráter filantrópico da coisa toda -, me fez lembrar o ótimo filme The Square: A Arte da Discórdia (2018). Quando Sam se vê "preso" a esse sistema meio vazio de galerias, de performances, de happenings, em que públicos sonolentos e desinteressados passam a consumi-lo como uma espécie de extravagância fetichista, ele passa a se perguntar se a liberdade que ele tanto desejava, teria sido efetivamente alcançada. Especialmente com o seu direito de ir e vir limitado por um trabalho exacerbante e, por quê não, estressante. A obra foi inspirada em eventos reais e é super bem costurada, alternando momentos enigmáticos, com outros mais divertidos e até tensos. É um tipo de experiência completa, recheada de mensagens, e que renderá um bom debate na mesa do bar, pós sessão.

Nota: 8,5

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